Os chinelos de quarto... Ana Fonseca da Luz


Levanto-me da cama num salto. Levanto-me ainda a dormir, ou talvez não. Cheira-me a torradas e a terra molhada. Enfio os chinelos que, por acaso, são horríveis. Até os meus pés se ressentem de tanta fealdade! Os olhos então!…
Não acendo a luz. Já sei o teu quarto de cor, tal como sei os teus olhos. Numa fracção de segundos, consigo ver se estás bem ou mal-humorado. Basta-me olhar-te nos olhos. Até parece que te conheço! Mas não! Nunca ninguém conhece ninguém.
Olho-me no espelho, porque já entra alguma claridade no quarto, e quase me assusto com o que vejo. Bolas! Aquela sou eu? Eu! Ontem, quando me deitei, estava tão bem! Mas hoje… consigo estar pior que os chinelos! É por isso que não gosto de dormir. Qual sono de beleza qual gaita! Se tivesse coragem, pedia-lhe para tirar dali o espelho. Há dias em que ele me detesta. Hoje é um desses dias. Conserto o cabelo num gesto maquinal e passo as mãos suavemente pela cara, à espera de um milagre. Nada!
O choque da minha imagem reflectida no espelho fez com que acordasse. Estes chinelos são realmente feios! Abro a janela e, tal como o meu nariz me tinha avisado…lá está ela, a chuva. Bolas! Detesto chuva. Mas aquele cheiro consegue ser melhor que o das torradas!…
Saio finalmente do quarto. Na casa de banho, outro espelho ingrato lembra-me que estou quase com cinquenta anos. Passo a escova no cabelo, lavo os dentes e ajeito o pijama azul. Ainda bem que o pijama é teu e, como me está grande, me tapa os chinelos. Não quero que os vejas. Para mal-encarada basto eu! As mulheres deviam acordar sempre maquilhadas e penteadas, como nos filmes e nas telenovelas, em que elas acordam sempre frescas e maravilhosas e eles com aquela barba podre de sexy!… Mas pronto, estou melhorzinha.
O teu cão abana o rabo. Parece que me conhece. Então não é que o raio do cão é giro!… Cheira-me os chinelos, tenta mesmo mordê-los. Está visto que o teu cão, além de ser giro, como tu, aliás, também não gosta dos meus chinelos.
Chego finalmente à cozinha, a puxar por uma perna, porque o malvado do cão não me larga o chinelo. Estás de costas. As torradas estão sobre a mesa, forradinhas com manteiga e o café cheira melhor que a terra molhada lá fora. Despreocupada, a minha roupa repousa nas costas da cadeira, junto com a tua. Viras-te e é nesse momento que compreendo por que é que, sempre que posso, passo a noite contigo.
- Bom-dia! Estás linda! Como é que consegues acordar sempre com esse ar de quem tem apenas quinze anos?!
Esqueço as torradas, o café, o cheiro da terra molhada e até os malvados dos chinelos. Beijamo-nos, como se fôssemos duas estrelas de cinema!…

A.Luz

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