VOLTEI A ESCREVER "DEUS" COM LETRA GRANDE



Hoje, não sou eu que te escrevo, porque as minhas mãos não me obedecem.
Quem te escreve é o meu coração, que hoje acordou sereno, como há muito não o sentia.
Finalmente e ao fim de quase três anos após a tua morte, sinto que te deixei ir. Que te deixei fazer essa travessia que se te impunha, mas que eu, egoísta, não te deixava completar.
Espero que me perdoes, filho, mas é que perder-te assim, de um dia para o outro, foi o maior castigo que Deus me deu.
E ainda dizem que Deus não castiga, que Deus é amor. No dia em que te perdi, achei que Deus nem sequer existia, que Deus era mau, traiçoeiro e que simplesmente não gostava de mim. Passei até a escrever o seu nome com letra pequena…
Cortei relações com Ele. Nunca mais a minha boca pronunciou o seu nome e cheguei mesmo a convencer-me, de que Ele não me fazia falta nenhuma.
Nenhuma mãe deveria ver um filho morre-lhe nos braços. Mas eu vi!
Brincavas no jardim da tua avó, e o ar cheirava a lilases e a rosas. Coisas da Primavera!
Eu olhava-te orgulhosa e a tua avó, mulher que a vida sempre tinha tratado com sofrimento, parecia agora serena. Parecia mesmo feliz!
Estava viúva e finalmente podia viver sem as amarras que a prendiam a um casamento, infeliz, mas que ela tinha suportado estoicamente, porque não queria ser a primeira mulher da nossa família, a passar por esse flagelo dos nossos dias, como ela dizia, que era o divórcio.
E assim, lá se habituou a ser submissa e apagada mas sempre tendo esperança, de que um dia, ainda havia de ser feliz.
O meu pai morreu. Eu sofri. A minha mãe também, muito, mas foi como se eu a visse voltar a nascer e a ser a mulher que há muito morava, escondida, dentro dela. Grande mãe, a minha!
Olhávamos-te, enquanto na tua bicicleta, pedalavas à volta ds canteiros onde as roseiras, os lírios e as alfazemas, viviam em perfeita sintonia.
Tudo era perfeito. Parecia-me estar num quadro, de um pintor qualquer, que nnguém conhecia, mas que desenhava na perfeição tudo o que via, não porque queria sr famoso, mas porque pintava com o coração. Pintava a vida!
-Mãe, avó, olhem para mim… sem as mãos no guiador!
Quando te olhámos, já estavas no chão. As rodas da tua bcicleta, continuavam a rodar no vazio e também os teus olhos, abertos, olhavam o vazio. A tua cabeça, jazia sobre o canteiro e as rosas, outrora amarelas, estavam matizadas do escarnado do teu sangue.
Em vão te agarrámos, te sacudimos e chamámos pelo teu nome. Tudo inútil. Já ali não estavas. Restava-nos o teu corpo, quente e desarticulado, que embalámos nos nossos colos de mães sofredoras, enquanto o teu pai chamava por socorro.

Cantei na missa do teu funeral, não para aquele Deus ingrato, que me olhava pregado na cruz, mas para ti. Para ver se me ouvias e esperançada que me dissesses ao ouvido, que eu cantava bem. A tua avó, foi a minha tábua de salvação. O teu pai o pilar da minha vida. Os teus irmãos, bocadinhos
soltos de ti, que me lambiam com beijos, que cheiravam a ti, mas que não eram teus. Durante 3 anos, amarrei-te a mim.
Não sei se para me castigar a mim, por te deixar andar de bicicleta, sem capacete, se a ti, por me castigares com a tua ausência física.
Continuei de costas voltadas para Deus e de mão dada contigo.
Estou sentada na mesma cadeira, onde estava quando caíste. A tua avó está ao meu lado, mas ausente. Quando lê, entrega-se à leitura, passando a viver nas folhas do livro. Ora sorri, ora entristece. Minha querida mãe!
Afago a minha barriga ainda pequenina, mas onde eu sei
que tu, voltaste a entrar. Podes até nem ser tu, mas é um bocadinho de ti que lá vem, para os meus braços.
Não te substituí. Ninguém nunca, te substituirá. Apenas achei que era tempo de te deixar partir.
Guardo-te aqui!
Na margem esquerda do meu peito!
Para sempre!
E voltei a escrever Deus com letra grande.

Nenhum comentário:

Postar um comentário