Alma de Pó... Ana Fonseca da Luz
Posso, finalmente, partir em paz. Tudo foi feito conforme eu desejava e tinha pedido. Estranho! Nunca pensei que fosse assim! Sempre pensei que doesse! Mas não, é só como desatar a ponta de um nó. Um nó que, quando nascemos, é muito apertado, mas que, depois, com o passar do tempo, com os desgostos e os desencontros da vida, se vai tornando lasso, frágil, até que vai uma ponta para cada lado. Agora percebo que é inútil ter medo da morte. Afinal, é só um passo em frente. Um passo gigantesco em que, num momento, somos corpo e depois, apenas isto que agora sou, alma.
Eu sei, não é fácil perceber. Tem de se estar deste lado do muro. Tem de se transpor esta porta invisível, e deixar de ver com os olhos, porque estes já não existem, e centrar todos os sentidos, todos os quereres nesta coisa volátil e transparente que é a alma. Agora sou feliz. Agora o meu coração não é um músculo que bombeia sangue. Agora o meu coração não tem forma, a minha alma invisível é que tem a forma de um coração. Como é grande a minha alma, como é leve, como é bom voar! Sim voar, porque agora, finalmente, posso voar. Posso misturar-me nas cores do arco-íris, no som de uma ária de ópera. Posso ser uma gargalhada, uma carícia ou até uma lágrima. Posso gritar alto, bem alto e só eu ouvir o meu grito. Posso ser um livro cheio de letras e palavras e passar de mão em mão, para que me leiam. Posso até, imaginem, dançar numa sala de baile e não ser bailarina, mas sim um tango ou uma valsa. Eu posso tudo, até ser infinitamente feliz.
Sabem, quando, por vezes, temos tudo para ser felizes e, simplesmente e sem sabermos porquê, deixamos fugir todas as oportunidades, quando elas estão ali mesmo ao nosso alcance? Isso só acontece, porque não deixamos vir ao de cima a nossa alma, porque a acorrentamos e ela não foi feita para estar acorrentada. Ela não foi feita para estar dentro dessa muralha que lhe foi imposta, quando nascemos e que é o nosso corpo. Ela precisa de espaço para voar. Precisa de espaço para abrir as asas e tornar-se imponente, majestosa. Ah, como é gloriosa a nossa alma! Como ela reúne tudo aquilo por que ansiamos quando está acorrentada ao nosso corpo!
Gostava de a poder descrever melhor, mas não, não consigo. Já repararam, às vezes, quando há muito vento, e o pó redemoinha no ar, em círculos vertiginosos e quase impossíveis de acompanhar com a vista? È assim a viagem. É assim que tudo começa. É assim que tudo acaba.
A alma é só um grão de pó brilhante, com asas e que só conseguimos ver quando não abrimos mais os nossos olhos.
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