Maria das Dores... Ana Fonseca da Luz
Agarrada ao tanque, onde esfregava a roupa suja de nódoas e de mágoas, mastigava a vida como quem mastiga uma côdea de pão duro.
As mãos gretadas mergulhavam na água gelada, mas ela já nem as sentia. Já não lhe doíam… Já nada lhe doía. O corpo magro há muito se havia habituado aos maus tratos. Primeiro, do pai que a castigava sem que ela, a maior parte das vezes, percebesse porquê, perante a indiferença sofrida da mãe. Mais tarde, e depois de um casamento que ela pensava ser a sua salvação, do marido, que, ao fim de 15 dias de casamento, a esbofeteou, porque a comida não estava do seu agrado.
Chamava-se Maria das Dores. Que bem lhe ficava o nome!…
Nunca nenhuma vizinha lhe viu um sorriso. Nem quando a filha nasceu e a quem ela pôs o nome de Rosa.
E esfregava a roupa, e batia-a na pedra com raiva e o mar das lágrimas que não havia meio de secar caía-lhe na água gelada e temperava-a com sal e dor.
A Maria das Dores nunca conheceu a felicidade de que as outras pessoas falavam. Nunca conheceu o amor de que ouvia falar nos folhetins falados que ouvia na pequena telefonia, às escondidas do marido. Nunca conheceu a suavidade de uma carícia e muito menos sabia o que era um beijo que não soubesse a vinho e a raiva.
Todos os dias, mal acordava, pedia a Deus que aquele fosse o seu último dia na terra. Depois, temente a Deus, pedia que a perdoasse e que lhe desse forças para suportar mais um dia de tempestade.
O marido saía cedo para o trabalho, de cara fechada, depois de uma noite em que ela tinha de se lhe entregar, de olhos bem fechados, para não o ver. E, ao fim de algum tempo, deixou mesmo de o sentir. Limitava-se a estar ali, ausente, de olhos colados no tecto, enquanto o marido lhe dizia que ela nem para rameira servia.
E esfregava a roupa, de olhos turvos e sem alma…
Depois do tanque da roupa, esperava-a um sem fim de afazeres que fazia de cor e sempre o melhor que conseguia, porque sabia que qualquer coisa que estivesse menos bem era o suficiente para o marido, que chegava tarde e bêbedo a casa, a insultasse e a espancasse, sem dó nem piedade.
As vizinhas cochichavam nas suas costas, lamentando a vida da Maria das Dores. Uma chegou mesmo a dizer que o deixasse.
Mas como podia ela deixá-lo?
Não tinha ninguém. Só a filha…
Mas até a filha a deixou. Quando tinha dois anos encheu-se de febres e, apesar do médico da aldeia a ter enchido de remédios e mezinhas, a Rosinha não aguentou e, ao fim de uma semana de febres, das quais o marido a acusava, porque não tinha agasalhado bem a criança no rigor daquele Inverno, morreu.
Maria das Dores vestiu-se de preto dos pés à cabeça e chorou pela filha e de alívio, porque lhe adivinhava uma vida igual à sua. Melhor assim…
Se ao menos Deus se lembrasse também dela!… Mas não. Continuou a esfregar a roupa suja de nódoas e mágoas e a servir o marido, de olhos fechados e sem alma no corpo, a vestir-se de preto e a chamar-se Maria das Dores.
Um dia, um dia, não conseguiu levantar-se.
As forças tinham-na abandonado. Não conseguiu que o seu corpo mirrado de carnes e de esperança saísse da cama.
Não esfregou a roupa suja de nódoas e de mágoas.
Não fez a janta a preceito, como o marido gostava.
Não ajeitou a casa, cheia de medo de lhe desagradar.
Não se chamava mais Maria das Dores.
E o marido veio, tarde, bêbedo, fedendo a vinho e a suor.
E insultou-a.
E arrastou-a pelos cabelos até à cozinha.
E obrigou-a a fazer ovos mexidos, enquanto lhe apontava uma faca de ponta e mola ao pescoço.
E ela, sem nome, sem alma e com o tanque cheio de água gelada à sua espera, disse-lhe:
- Mata-me.
- Mata-me! – gritou-lhe.
Os olhos do marido raiaram-se de sangue e ela viu neles a sua morte e a sua liberdade.
Mas ele arrastou-a para a cama e insultou-a e teve-a sem a ter e adormeceu a cheirar a vinho e a suor e a Maria das Dores de olhos abertos, colados no tecto, pedia coragem a Deus.
E Deus deu-lhe coragem.
No dia seguinte, as vizinhas ouviram-na cantar, enquanto lavava a roupa no tanque cheio de água gelada.
Lavava um lençol manchado de sangue. Esfregava com força, para lhe tirar a sujidade e a mágoa.
Depois, tinha a casa para ajeitar. A criação para tratar e mais um cem número de coisas para fazer.
Quanto à janta para o marido, não havia pressa…
Ele tinha ficado em casa. Não tinha ido trabalhar. Nessa noite, não ia chegar bêbedo e a cheirar a suor. Não lhe ia bater, nem arrastar para a cama, enquanto a insultava.
Estava na cama, com a faca de ponta e mola espetada no pescoço, de olhos perdidos no tecto como ela costumava ter, sempre que ele a tinha, sem nunca a ter…
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