AS ÚLTIMAS VONTADES DA CELESTE


Quando a Celeste morreu, deixou escrito, num pedaço de papel, amachucado, umas quantas coisas, que fazia questão que lhe fizessem, no dia em que fechasse os olhos para sempre.

Não queria um velório tradicional, onde sempre que uma pessoa entrava para cumprimentar os familiares, desatava tudo a fungar e a assoar-se ruidosamente, incomodando assim, não só os mais chegados, mas também o defunto, que nem sequer conseguia mandar as pessoas fazerem menos barulho.

Por isso, informou a sua melhor amiga, de nome Angélica, de como queria que a coisa se desenrolasse e ameaçou-a que se não se passasse tudo como ela queria, haveria de voltar para a assombrar, até ao resto dos seus dias e que a levaria com ela para o céu, para o inferno ou simplesmente para um novo útero, para que voltassem a nascer no mesmo dia e reatarem aquela tão maravilhosa amizade.

Mal suspeitava a Celeste que já estava mais para lá do que para cá e que passado pouco tempo, lhe daria um tranglomanglo, que a levaria desta para melhor.

A Angélica estava inconsolável. Mais de cinquenta anos de amizade, cortados abruptamente por uma porcaria de uma pneumonia, à qual a sua amiga, nem sequer dera luta, tendo-se entregue nos braços da morte, serenamente.

Nem pareciam coisas dela. Logo ela que sempre tinha dito, que não haveria de morrer tão cedo, por haver uma carrada de coisas que ainda não tinha feito.

- Isso é que era bom, eu morrer sem ir ao Brasil e tomar banho naquelas águas quentinhas. E pena tenho eu, de ter 70 anos, porque se não os tivesse, havia de usar um bikini daqueles que elas lá usam. E quando eu for, vais comigo…

E a Angélica acabava por se escangalhar a rir só de imaginara a figura de ambas, com 70 anos e de fio-dental, a passearem pela praia.

Por certo espantávam todos os turistas, mas isso não interessava nada. Ela não podia era morrer sem antes passar pelo Brasil e aproveitar para repuxar algumas coisas, que a maldita lei da gravidade continuava a puxar incessantemente para baixo. É que tinha ouvido dizer que era no Brasil, que estavam os mestres do bisturi…

Angélica limpou uma lágrima mas não conteve uma breve gargalhada, porque não conseguiu deixar de pensar na figura, das duas, numa praia do Brasil, com quase tudo o Deus lhes tinha dado, ao leu e praticamente já fora de validade.

Encaminhou-se para a cómoda do quarto da amiga e pediu para que saíssem todos, pois queria despedir-se convenientemente da Celeste. Abriu a gaveta de cima, e duma caixinha de madeira, que tinham trazido do México, na última viagem que tinham feito juntas, retirou um envelope onde num papel todo amachucado, se podia ler:
“Os meus últimos desejos.”

Angélica tinha algumas ideias, mas como a amiga era completamente maluca, sabia que qualquer coisa era possível, vinda da sua cabeça, como exigência funerária.

Angélica ainda começou a ler a carta de pé mas acabou por se sentar ao lado da defunta, que estava ainda deitada na sua cama, em camisa de dormir, de olhos meio abertos e um sorrisinho trocista, porque não aguentou de tanto rir com o conteúdo da missiva.

Quem a ouvisse, do lado de fora, e ela tinha a certeza que alguns ouvidos deviam de estar colados à porta que ela fechara, haveria de pensar que a boa da Angélica estava a ter um ataque de histerismo, porque ela, simplesmente, não conseguia conter as gargalhadas.

Ainda ouviu uma voz perguntar:

- Estás bem, Angélica? Abre a porta…

Mas a boa da Angélica nem respondeu, continuou a ler a carta e a pensar como raio ia ela ter tempo de organizar um funeral com tantos requintes de maluqueira. Mas tinha de conseguir, porque a boa da Celeste era menina para a meio da noite, lhe aparecer depois de morta, no seu quarto a
puxar-lhe os cabelos ou os pés, por ela não lhe ter proporcionado um funeral à altura.

Depois de lida a carta, Angelica recompôs-se e saiu do quarto da defunta, diretamente para a casa de banho, porque não havia bexiga que aguentasse tal ataque de riso.

Nunca se tinha visto nada assim!

A Angélica fartou-se de trabalhar mas a festa do funeral da amiga, foi um sucesso.

A Celeste queria ser cremada. Foi!

A Celeste queria que fosse servido um jantar para os amigos mais próximos. Foi!

A Celeste queria Prink Floyd, Santana e Queen a tocar durante todo o jantar! Teve!

A Celeste não queria flores mas sim que o dinheiro que haviam de gastar mas ditas, fosse posto numa grande caixa de madeira, e que depois esse dinheiro fosse entregue a uma amiga de ambas, que vivia com algumas dificuldades. Não teve flores!

A Celeste quis que as suas cinzas fossem deitadas ao mar. E foi o que a Angélica fez, numa praia qualquer, deserta, no Brasil, onde se passeou de bikini, com a Celeste dentro de uma pequena caixa de madeira. E lá andaram as duas, à beira-mar, até que a Angélica a largou numa onda branquinha que lhe morreu aos pés e lhe levou a última lágrima, que ela chorou pela amiga.

Só um desejo a Angélica não lhe concedeu, depois de muito pensar.

Não foi repuxar as maminhas! Isso é que era bom!
Ali, só o seu defunto marido tinha mexido e além disso, não queria ficar até morrer, sem a companhia da sua querida Celeste.

Se ela disse que lhe aparecia depois de morta, se a Angálica não lhe fizesse tudo o que ela queria, era porque aparecia mesmo.

É que a sua amiga Celeste era maluca, mas mentirosa, não era mesmo!

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