Os homens também choram... Ana Fonseca da Luz


OS HOMENS TAMBÉM CHORAM Vejo-te afastar de carro. Viras-te para trás e acenas-me um adeus cansado. Não choras… Não tenho nem forças para te retribuir o adeus. O carro afasta-se devagar, contornando a curva junto ao mar até o carro ser engolido pela paisagem. Fico no meio da estrada deserta, tão deserta quanto eu, à espera que te arrependas e que voltes para casa. Mas não voltas… Continuo no meio da estrada deserta, mais um bocadinho, esperançosa de que a paisagem azul te traga de volta para mim. Entro finalmente em casa. Está tão deserta como eu e no entanto, transbordante de nós três. Estamos em cada canto da casa, em cada móvel e até nas flores que morrem silenciosas na jarra. Depois repito o ritual que cumpro de há cinco meses para cá. Subo as escadas, com a casa quase às escuras, porque a noite já lá vem e encosto-me à porta do teu quarto onde o teu nome, “Laura” está escrito em letras cor-de-rosa. Abro as gavetas onde as tuas roupas continuam arrumadinhas. Passo os dedos pelos porta-retratos para te roubar os sorrisos, mas não consigo e sento-me na cadeira de baloiço, onde tantas vezes de dei a beber de mim, enquanto olho o teu quarto, o teu mundo todo rosa e branco. Então aí, o meu choro é quase um uivo tal é a dor que me consome. Arranho-me para me penalizar por um pecado que não cometi e imagino-te nos meus braços onde te embalo ao som do baloiçar cadenciado da cadeira e da “Canção de Embalar” de Zeca Afonso que tantas vezes te cantei e que parecias gostar tanto. Naquela noite não te ouvi chorar, dormia, tal era o cansaço que me consumia depois de tantas noites mal dormidas, entre um biberon e outro… - Uma mãe não dorme – disse-me o teu pai com um olhar que me acusava de maneira velada pelo simples pecado de ter adormecido naquela noite. Mas não adormecemos os dois? Olho em volta para o teu quarto. Este paraíso cor-de-rosa foi o último cenário que os teus olhos viram enquanto eu dormia, e tu choravas, e eu não ouvia porque dormia e, uma mãe não dorme. Pergunto-me constantemente que crime foi o nosso para te perdermos assim depois de oito anos a lutar para que nascesses, fazendo tratamentos atrás de tratamentos enquanto nos mesmos sítios que eu entrava e lutava para te ter, outras tomavam a pílulas do dia seguinte e faziam do aborto gratuito e com direito a acompanhamento psicológico uma prática corrente. O Deus que eu conheci era misericordioso, por isso na noite em que te perdi, porque cometi o crime de adormecer, deixei de acreditar em Deus. O teu pai continua a rezar por ti, mudo, sem chorar uma lágrima. Eu choro por ti todos os dias e por esse Deus que te levou sem pensar na minha dor e na do teu pai. Dou por mim na nossa cadeira de baloiço com o teu coelhinho de peluche todo cor-de -rosa e de orelhas brancas. Cheira a ti e mais uma vez me castigo chorando e rasgando-me por dentro. Foi por isso que o teu pai se foi embora. Ele não aguentou o meu choro. Eu não entendi o seu silêncio. Há pouco insultei-o, magoei-o, disse-lhe com palavras tudo aquilo que ele só me diz com o olhar. E sempre em silêncio e sem verter uma lágrima por ti, fez as malas e partiu. Desde o dia em que partiste e o silêncio passou a ser tão forte nesta casa, que não consigo dizer o teu nome. Tento mas morre-me na garganta. - Perdoa-me, filha! Perdoas? “Uma mãe não dorme”, são essas as palavras que me ecoam na cabeça. Essas palavras e o teu choro que eu não ouvi. No meu colo o teu coelhinho preferido repousa e cheira a ti. O meu chorar é cortado por outro choro abafado. Encostado à porta do teu quarto está o teu pai. Voltou. Os seus olhos de cetim estão marejados de lágrimas. A cadeira pára de baloiçar. O teu pai resvala pela parede e fica sentado no chão com a cara entre as mãos. Chora! Continuo sentada na nossa cadeira de baloiço. Não sei o que fazer. Nunca o tinha visto chorar. Depois estende-me os braços e pede-me colo da mesma maneira que tu tantas vezes me pediste. Corro para ele e embalo-o em meus braços. Cheira a ti, o teu pai…Choramos os dois por ti… Digo finalmente o teu nome e perdoo a esse Deus que te levou de nós. Enxugo-lhe as lágrimas com beijos e naquele abraço tão eterno, perdoamo-nos mutuamente por um crime que nenhum de nós cometeu. Ficamos ali, sentados no chão do teu quarto e dividimos lágrimas e afagos. Afinal, os homens também choram… A. Luz

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