Tokalon... Ana Fonseca da Luz


Estreitas-me num abraço carinhoso, enquanto me ralhas com os olhos.
As mãos, outrora bonitas e esguias, balançam-te agora, no fim do abraço cansado, ao longo do corpo velho e gasto e pedes-me desculpa por seres velha, mais uma vez, com o olhar.
Pedes-me desculpa pelo tempo que não me deste, pelos aniversários que te esperei em vão, para que me cantasses os parabéns, pedes-me até desculpa pelo que jamais terá desculpa.
Sento-me contigo no banco de jardim e agarras-me a mão com força. Não me queres deixar ir, mas eu tenho pressa…
Digo-te a correr, sempre a correr, que tenho muito que fazer e desvio o meu olhar covarde do teu olhar cansado e triste. Mas, como és muito parecida comigo, não choras. Jamais me darás esse prazer e, no entanto, os teus olhos são um mar de lágrimas, que prendes com o fogo da mulher forte e decidida que ainda mora em ti, apesar de tudo, apesar até dessa solidão que eu te adivinho e consinto, porque tenho muito que fazer…
Lembro-me de ser pequena e de te ver de olhos castanhos, vivos, lindos, a passar pelo rosto um creme castanho, que cheirava tão bem!
Gostava de ficar a ver-te, enquanto te arranjavas. Mesmo que não fosses sair, mesmo que fosse só para esperar o pai que, nesse dia, regressava de viagem, mesmo que fosse para ficares todo o dia no teu quarto, de costas viradas para a janela, de costas viradas para o mundo, com um livro como companhia. Mesmo nesses dias, passavas, logo cedo, esse creme pelo rosto e do qual eu lembro perfeitamente o cheiro e a textura.
Perguntava-te baixinho, quase a medo, não fosses tu pôr mal o teu creme:
- Para que é que a mãe põe esse creme?
Respondias-me quase sempre de má vontade:
- Porque sim.
Essa é outra mágoa que tenho tua. Não davas valor ao meu encanto por ti nesse momento, que para mim era tão especial.
Mas mesmo assim, no outro dia de manhã, lá estava eu fiel àquele breve momento que nos unia e que eu gostava tanto de ver e cheirar.
Quando estavas bem disposta, feliz, punhas-me um bocadinho na ponta do nariz que eu espalhava feliz por toda a cara, ficando assim todo o dia a cheirar a ti. No fim de eu espalhar o creme conforme sabia, tu davas-lhe o retoque final. Provavelmente tiravas-me o creme da cara, mas a verdade é que o teu cheiro ficava lá, todo o dia.
Consigo ainda ver-te de robe de chambre florido, em tons de lilás e rosa, a cair-te tão bem pelo corpo magro e de cabelo sempre impecavelmente penteado. Agora, olho-te e vejo o teu cabelo outrora cor de azeviche, do qual tu tanto te orgulhavas, cheio de neve e cinza. Um dia, também o meu vai ser assim. Um dia também a minha filha vai estar sempre cheia de pressa e com muitas coisas para fazer…
Agarras-me a mão com força, com a pouca força que já te resta e dizes-me:
- Devias passar uma base nessa cara. Estás cheia de olheiras. Dormiste mal, não foi?
Volto a recordá-la, de robe de chambre florido e gracioso, no dia em que, mais uma vez, lhe perguntei para que é que ela punha aquele creme e ela me respondeu:
- Quando tiveres a minha idade e a tua carinha perder esse brilho especial que agora e durante muitos anos ainda há-de ter, logo vês para que é que ponho o creme.
A marca é outra, mas percebo hoje muito bem por que é que ela punha aquele creme que fazia as minhas delícias.
Despeço-me com um beijo que me cheira ainda a Tokalon e peço a Deus que, quando os meus cabelos forem de neve a as minhas rugas ingratas e inevitáveis me riscarem a cara, eu consiga manter o ar de senhora que a minha mãe ainda hoje tem.
Volto-me, para lhe acenar com a mão e dizer “até para a semana”.
- Vai, filha, vai à tua vida, que tens muito que fazer – responde-me, serena e triste, ajeitando docemente com a mão o cabelo que o vento teima em desalinhar.
Corro para o carro e saco da minha bolsinha de maquilhagem que sempre me acompanha.
O espelho mostra-me a minha mãe, há 40 anos atrás, a esconder as primeiras mazelas que o tempo impiedoso lhe ofereceu, contra sua vontade.
- Para que é que a mãe põe esse creme? – pergunta-me a minha filha, no banco de trás do carro.
- Porque sim.

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