Encontrando-se... Francisco Valverde Arsérnio










Amanhece neste entardecer, acendes a voz e ordenas as sílabas como se o destino fosse apenas palavras e o espalhar da sede. Já te ofereci o horizonte que trago preso aos braços e o sabor dos meus lábios, mas a incógnita do tempo deixou um rasto de fumo cinzento, deixou o limite ilimitado. Amanhece e no teu rosto ainda permanecem as pombas brancas, o tempo recuou no teu tempo e lanças no ar o teu perfume com o meu endereço. Não é fácil estares aí, há uma dor que te prende os membros embora ainda permaneçam nas paredes da casa os aromas dos sonhos vividos, a cama está vazia mesmo cheia do teu corpo e no chão ainda há poemas por inventar, ainda há sonetos incompletos nos teus olhos.
Hoje não voaste pelos campos de malmequeres, não aproveitaste o começo da primavera, estás de mãos vazias, vazias de pólen, pareces uma borboleta triste… Sim! As borboletas também têm direito a estar tristes porque o silêncio do teu peito está ocupado mesmo quando não há palavras, por vezes, és como as reticências… prolongas-te num suspiro.
Amanhece, sentes o ar quente e apetece-te ter asas para voar, voar contra o vento e contra o tempo. O peito relembra-te da urgência em arderes a existência com letras de fogo e deixares as metáforas incendiarem-se por autocombustão. «Procura-me no grito das gaivotas e aproxima-te de mim devagarinho, só assim poderás entrar nos meus olhos», foi o que consegui ler numa nuvem que passou. Agora sei quem és, és a mulher que vi partir na imensidão da areia da praia. Sim, talvez por isso eu tenha sentido o chamamento do mar novamente. Escuto o som do vento que te levou a dizer Não! Agora diz Sim. Sinto a tua presença em cada grão de areia. Cheira a sal, a sal do mar e enterro os dedos nas profundezas da terra, talvez a paixão habite por lá, talvez o amor tenha comprado todos os grãos de areia. Sim, agora sei quem és, já vimos o pôr-do-sol, dormimos à luz da lua e já tiveste corpo de sereia. És a recordação de mim, a manhã e a tarde, és o mar e o céu. És a primavera que hoje começa.
Amanhece e ainda tens o corpo colado à porta do quarto, as palavras ainda estão trancadas e seguras as lágrimas com as pontas dos dedos, pedes às andorinhas que levem nos bicos as pequenas gotículas transparentes e as deitem no campo de malmequeres. Nas paredes ainda permanecem os aromas dos sonhos mas a casa está vazia. Da janela, uma leve brisa beija-te o rosto e tentas esquecer que deambulaste pelas ruas labirínticas e caminhaste no mar até à linha do horizonte.

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