A Luz dos meus olhos... Ana Fonseca da Luz





Mal ele nasceu e o peguei no colo, o meu coração encheu-se de alegria, mas uma alegria que eu não conseguia explicar. Era uma alegria diferente da alegria imensa que tinha sentido com a chegada dos meus outros filhos. Era uma alegria plena. É difícil de explicar. Só passando por ela. Não se explica por palavras.
Porém, depois de o amamentar, olhei-o nos olhos ainda sem cor definida e li neles o amor.
Ninguém me compreendeu, quando tentei explicar o que tinha sentido. Nem a minha melhor amiga me compreendeu, quando lhe disse:
- O Tomás vai ser um menino especial.
- Nem que parisses cem, todos iriam ser especiais – respondeu-me, não dando muita atenção ao que eu tinha dito.
Mas a verdade é que o Tomás era mesmo especial. Passou a sua primeira infância agarrado à bainha da minha saia, coisa que os outros nunca fizeram, e o seu passatempo preferido era agarrar-me na cara e olhar-me dentro dos meus olhos, como se procurasse ler na minha alma, como quem lê num livro aberto.
Olharmo-nos nos olhos passou a ser um jogo muito nosso, pois ele não fazia isso com mais ninguém, e eu sentia que este meu filho era mais meu filho que os outros, embora amasse os três de igual maneira.
Quando ele tinha perto de cinco anos, num dos nossos jogos de olhos-nos-olhos, perguntei-lhe:
- O que é que tu vês dentro dos olhos da mãe?
Fiquei à espera de uma resposta infantil, o que seria próprio da sua idade, mas ele, sem desviar os seus olhitos castanhos dos meus, disse-me:
- Vejo-me a mim. Estou dentro dos teus olhos. E estou sempre a voar.
Pronto, pensei, já está a inventar. Já se está a comportar como um miúdo da sua idade se deve comportar. Mas ele continuou:
- Eu vou ser um anjo. Ainda não sou, mas vou ser, quando for para a escola dos manos.
Por uma fracção de segundos desviei o meu olhar do seu, mas ele agarrou-me a cara e continuou:
- Quando eu for um anjo, tu vais chorar. Mas porquê? É tão bom ser anjo. Além disso, estou sempre dentro dos teus olhos.
Não deveria ter dado importância àquela história do meu filho, mas a verdade é que dei. O que é que aquele menino me queria dizer com aquilo? O meu coração ficou pequenino no peito e um pressentimento estranho instalou-se na minha alma.
Os nossos jogos-de-olhos continuaram, mas eu nunca mais tive coragem de perguntar ao Tomás o que é que ele via nos meus olhos. E, com o tempo, aquela angústia foi-se dissipando e o meu coração voltou ao seu tamanho normal.
Uma noite, tinha o Tomás sete anos, quando acordou a chorar. Corri ao seu quarto e encontrei-o sentado na cama, a soluçar.
- O que foi, bebé? Tiveste um pesadelo?
- Não. Estava com saudades tuas. Fica um bocadinho comigo. Dorme comigo.
- Está bem, eu durmo contigo, mas só até tu adormeceres. Eu apago a luz.
- Não apagues ainda – disse-me, olhando-me nos olhos. – Deixa-me ver se as minhas asas já estão grandes.
Os seus olhos encontraram os meus e consegui ver, nos olhos do meu filho, o que ele via nos meus. Vi o meu filho feliz, a rir e com umas asas pequeninas, mas fartas.
Vi ou sonhei?
Perto das onze da manhã, o telefone tocou e a xícara de café que eu tinha na mão caiu e ficou feita em mil cacos. O meu coração voltou a ficar minúsculo no peito e um arrepio percorreu a minha espinha. Corri para o telefone e atendi. Era da escola. O Tomás tinha dado uma queda grave, porque tinha saltado de um muro. Os colegas diziam que ele tinha saltado do muro para experimentar se já conseguia voar. Tinha batido com a cabeça numa pedra. Estava no hospital, em estado de coma.
Telefonei ao meu marido e corri para o hospital. Não sei se fui a pé, se fui de carro. Não sei se corri, se voei. No mesmo instante, estava lá, apesar de achar que nunca mais lá chegava.
Num quarto branco, numa cama branca, com lençóis brancos, o meu filho estava deitado, respirando de mansinho. Tinha uma mão sobre o peito e outra estendida ao longo do corpo. As minhas pernas não tinham força para se arrastarem até ao pé da cama. Foi com uma força que não era minha que caí sobre o seu corpo. Chorei, chorei, chorei…
Passados dois dias, eu estava ao lado da sua cama, de onde já não saía desde o dia do acidente. O Tomás abriu os olhos. Tinham a mesma cor indefinida do dia em que tinha nascido e a alegria que senti foi parecida, por instantes, porque me pareceu vê-lo nascer outra vez. Mas foi fugaz a minha alegria.
Com esforço, o Tomás procurou o meu olhar e, olhos nos olhos, disse-me, num fiozinho de voz:
- Olha, mãe! Já sou um anjo!
Levantou a mão que tinha sobre o peito e retirou uma pena branca, que depositou nas minhas mãos.
Passaram-se já cinco meses desde que o Tomás morreu. Já não tenho mais lágrimas. Secaram com o amor quentinho que os meus outros filhos e o meu marido têm por mim. A pena branca que, ainda hoje, não sei de onde veio, trago-a sempre junto ao meu coração.
O Tomás? O Tomás foi e será sempre a luz dos meus olhos.

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