O FIM DA LINHA... Ana Fonseca da Luz











Pela janela do comboio, perco o meu olhar, num misto de felicidade e intemporalidade. Esta viagens constantes e diárias só não me cansam, porque aproveito esta hora e meia do meu dia para me pôr bem comigo. É como se, ao soar o apito do comboio, anunciando mais uma partida, eu me despisse de mim e vestisse a minha pele de viajante-sem-regresso. Mas eu sei que, ao fim do dia, estou de volta e essa certeza, quando nada na minha vida é certo, traz-me uma nostalgia de tal modo adocicada, que se me desenha um sorriso involuntário nos lábios.
Procuro sempre o mesmo lugar. Gosto de viajar à janela e de costas para a chegada. Gosto de ver o mundo passar a correr no sentido contrário. Assim, não fico com saudades do que deixei para trás.
Nos primeiros tempos destas viagens, trazia um livro, porque lia. Depois, trazia um livro, não porque lia, mas porque podia sempre fingir que lia, enquanto pensava, evitando, assim, pousar o meu olhar distraído sobre quem não queria ser olhado. Mais tarde, passei a trazer o livro para evitar o teu olhar. E hoje, decidi não trazer nenhum livro e enfrentar-me a mim e a ti.
Sento-me, finalmente, de costas para o mundo e deixo cair as minhas mãos vazias no meu colo tão cheio de ansiedade. Faço o ensaio geral de tudo o que te vou dizer. Ou não… Ajeito a minha saia e troco a perna num movimento ensaiado, mas que me parece natural. Aliás, tudo em mim seria natural, não fosse esta minha falta de jeito para o inesperado. E, conhecer-te numa viagem de comboio, ver-te durante hora e meia todos os dias, tirando os sábados e os domingos, em que não trabalho e, logo, não viajo, foi a coisa mais inesperada que me aconteceu, de há uns tempos para cá. E a mais doce!…
Quando tu chegas, atrasado, como se te quisesses sempre fazer esperar, eu tiro o meu casaco e, desajeitadamente, sentas-te ao meu lado. Trocamos “olás” cheios de expectativas e também olhares tímidos, quentes e frustrados. Puxo a gola da camisola para cima, como se me sentisse nua e balanço a perna, que se recusa a estar quieta. O mundo lá fora foge-me com a mesma rapidez com que me foge a minha coragem. Tu, mais destemido do que eu, mas também pouco afoito, perguntas-me se estou bem. Foge-me a voz, abano a cabeça em sinal afirmativo e sorrio, sem graça. Acho que estou corada… Desvio novamente o olhar do teu, porque, afinal, não sou tão corajosa como pensava e olho através da janela, sem ver a paisagem lá fora, mas sim o teu reflexo na janela que já começa a ficar baça…como eu!
O comboio ganha velocidade, na mesmo proporção com que me foge a coragem. As árvores, despidas de folhas, balançam, inquietas, numa inquietude serena… Roças o teu braço no meu, sem querer, ou talvez não e pedes-me desculpa, de soslaio. Digo que não faz mal…e não faz! Não sei onde hei-de pousar os olhos agora. Há dez minutos que olho para a janela e não vejo nada. Voltas a tocar-me, desta vez no cotovelo. Viro-me e enfrento-te. Olhas-me, para logo deixares cair o teu olhar nas minhas mãos, que continuam imóveis e vazias, no meu colo. Encaminho também o meu olhar para as minhas mãos e, depois, para as tuas. São bonitas as tuas mãos, esguias, longas e sem aliança. As minhas são pequenas, brancas e sem aliança… É um bom sinal!
Finalmente, resolves dizer qualquer coisa. Perguntas se gostei do livro que andava a ler. Respondo que sim, que gostei muito e tu dizes-me que o andas a ler também e que, assim que o acabares, podemos trocar impressões. Claro que podemos. Gostei tanto! Gostei tanto do livro e daquele início de conversa! Depois… Bem, depois, falámos do tempo…malvado tempo, nunca mais vem a primavera e os dias azuis e do sol que nos beija…
Caímos novamente no silêncio. Dói-me este silêncio!
Retomamos a conversa. Queres saber o que ando a ler agora. Naquele momento, quero lembrar-me do nome do livro que ando a ler, mas esqueci-me. Esforço-me para me lembrar, mas não consigo. É como se uma borracha invisivel tivesse apagado tudo da minha mente. Tenho a certeza de que, se me perguntasses agora onde é que eu tinha nascido ou o meu nome completo, eu não ia saber dizer. Estou num estado catatónico, quase…
E o comboio, indiferente aos nossos recúos e avanços, em termos de amizade ou do que raio esta coisa se chama, vai continuando a viagem, saltitando de paragem em paragem, tal como eu saltito de sobressalto em sobressalto, sempre que me tocas ou me olhas de esguelha, quase mais assustado como eu.
Estamos a chegar. Começo a preparar-me para sair. Tu fazes o mesmo. Custa tanto chegar ao fim da linha! Ajudas-me a vestir o casaco, num gesto amável. É a primeira vez…
O comboio pára. Que pena! Digo “até amanhã” e sorrio, quase sem vontade. Na realidade, apetece-me chorar…
Para minha surpresa, diz-me que, a partir desse dia, começa a fazer a viagem de regresso comigo. A mulher acabou de ter bebé e ele vai passar a voltar mais cedo para casa. Tenho quase de me baixar para apanhar o coração, que me caíu aos pés. Tremem-me as pernas, tenho a boca seca e os olhos húmidos. Mas sorrio, num sorriso cheio de lágrimas. Dou-lhe os parabéns.
Chego ao fim da linha e ao fim de uma expectativa que não tem nome. Amanhã, cá estou outra vez, para a minha viagem de hora e meia. Só que vou passar a viajar de frente para o caminho e para a minha vida. Quanto ao livro que vou trazer para ler… talvez o Quo Vadis. É grande e pesado. Quem sabe não vou precisar dele, na próxima vez que um desconhecido me tocar no cotovelo e eu me deixar levar para além da viagem de comboio…

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