Pintar a ilusão num dia de chuva... Francisco Valverde Arsénio







Chove! Chove copiosamente neste tempo incerto que se perde na memória das estações do ano. Ainda há pouco o sol raiava na sua plenitude, havia luz, brilho e cheiro a verão antecipado. Agora o dia pintou-se de cinzento chumbo, os pombos recolheram-se junto das chaminés e o único som audível é o das gotas que caem dos beirais. De vez em quando um raio rasga o céu e o barulho do trovão faz com que os cães ladrem. Chove! Chove copiosamente.

Ela monta o cavalete no meio da sala e abre a caixa das tintas. Equilibra a tela mas não sabe ainda que pintar. Revê a vida numa imagem trémula de memórias breves, envolve-a um silêncio de murmúrios sem tempo. Vai à janela procurar no cinzento chumbo da tarde a inspiração que necessita, morde a ponta do pincel nº 3 e olha para a pequena espátula de uma polegada. À sua frente há uma galeria escura numa penumbra nascente, um eco vazio de palavras. Olha para as mãos e não encontra nos dedos o esboço que quer reflectir na tela. Há um tempo de espera suspenso em pequenos momentos vividos e também esquecidos, há vazio no olhar quebrado em ínfimos fragmentos. Ainda não sabe como começar a pintar o quadro nem tão-pouco o que pintar, talvez os pingos de chuva que caem obliquamente lhe recordem outro dia, outro momento, outro antes e depois. A cada minuto o dia fica mais escuro e ela olha a vida com os olhos marejados de lágrimas, olha a sombra da noite que cai antecipando-se às horas. Deixa a janela e molha o pincel numa tinta qualquer, desenha pedaços de si, páginas escritas em versos incompletos pelas longas horas de espera. Há instantes que não se conseguem registar numa tela: a aridez do deserto, o anoitecer do peito, a intensidade vivida em cada segundo, a ilusão.

Parou de chover e já há bocados de céu em linha de vista, um bando de gaivotas em formação “V” passa alto, ouve-se um trovão quase surdo, a tempestade parece ter tomado outro rumo.

Veio novamente à janela e ainda traz na mão o pincel, percorreu com o olhar o campo aberto que se estende à sua frente, acende um cigarro e solta o cabelo preso por uma fina fita elástica. Pela expressão facial, ainda não sabe como preencher o vazio da tela, submerge-se na memória e na imaginação e sente os olhos fatigados por lágrimas perdidas. Nos seus lábios assoma um nome, um murmúrio, um beijo dado, sente o mar no peito e sulca cada letra atrevida. Morde a ponta do pincel e afaga os medos, silencia o grito, humedece os lábios… ah! Se pudesse beijar cada uma das letras… solta-se de si e fecha a janela, despede a ausência e abraça a tela, sorri… pinta o arco-íris.

Nenhum comentário:

Postar um comentário