Só me percebi... Ana Fonseca da Luz


Só me apercebi de que tinha coração, no dia em que a conheci. Até aí, sabia que o tinha, porque mo tinham dito, porque sabia que precisava dele para viver. Sabia que me era imprescindível e que todos tinham um, mas não sabia o quanto ele me viria a fazer feliz. Na verdade, bem vistas as coisas, ele já me tinha surpreendido, batendo mais depressa do que o normal algumas vezes, mas nunca, nunca mesmo, me tinha proporcionado momentos de tão grande exaltação como naquele dia em que a vi pela primeira vez.
Eu esperava, impaciente, como sempre, o comboio que mais uma vez estava atrasado quando ela chegou arrastando uma mala de viagem enorme que devia estar pesadíssima, pelo modo como a puxava. Vestia uns jeans e uma t-shirt branca com o slogan “MAKE LOVE NOT WAR” e, sinceramente, foi isso que me chamou primeiro a atenção. Tinha um cabelo curto, demasiadamente curto para o meu gosto e uns olhos escuros e profundos, enfeitados por umas olheiras que lhe diagnosticavam uma noite mal dormida. Nem reparou em mim…
Continuei a analisá-la sem que ela desse conta e tirei os olhos do livro que sempre me acompanha quando viajo e que me entretêm quando sou massacrado pelos eternos atrasos dos comboios. Deixou cair o corpo despreocupado sobre a cadeira, num jeito que mostrava cansaço e algum desânimo. Tirou um espelho da carteira e esboçou uma careta desaprovando aquilo que via. Depois, ainda olhando para o espelho, ajeitou o cabelo com a ponta dos dedos, mordeu os lábios para lhes dar cor e sorriu para a imagem que o espelho lhe mostrava agora, como se se tivesse dado um milagre e ela fosse outra pessoa. Puxou a mala para a sua frente e repousou as pernas sobre ela, soltando um leve suspiro de prazer e eu não pude deixar de sorrir perante aquele quadro de descontracção que é bem mais comum nos teenagers, coisa que ela já não era. Finalmente, já instalada, acendeu um cigarro e aí sim, era a imagem da pessoa mais ZEN que se possa imaginar.
erante aquele quadro de satisfação por tão pouco, até me senti envergonhado por passar a vida a correr e a maldizer os minutos que passava na estação, a ler, enquanto esperava o comboio e jurei a mim mesmo que ia passar a tirar o máximo de proveito desses instantes para descontrair.
Já me tinha até esquecido de que estava com o livro aberto nas mãos porque o cenário à minha frente era muito mais interessante. E foi no momento em que deitou a cabeça para trás e soltou uma nuvem de fumo que mais parecia uma onda de prazer, que o senti a sério pela primeira vez. O coração!
Mas ela continuava lá no seu mundo distante e continuava a não dar importância nem a nada nem a ninguém. Era como se só ela existisse. Invejei-a intensamente naquele momento e o coração, aquele que até aqui eu só sabia que tinha, porque precisava dele para viver, voltou a dar-me sinal no peito.
Foi aí, que distraído, deixei cair o meu livro no chão e a trouxe de volta para este mundo. Mais rápida do que eu, tirou as pernas já descansadas de cima da mala e entregou-me o livro em mãos com um sorriso enternecedor. Nesse momento, tive medo que tivesse ouvido o barulho do meu coração ou até que tivesse visto a sua forma por baixo da minha camisa de riscas azuis. Mas se o viu e se o ouviu, não o demonstrou, apenas me disse com toda a naturalidade:
- Curioso, “No teu Deserto”, é precisamente o livro que ando a ler.
E deixando-me com cara de parvo e sem palavras, tirou de dentro da sua mala enorme, que devia trazer lá dentro tudo o que tinha e o que não tinha, um livro de Miguel Sousa Tavares, igualzinho ao meu. Agradeci-lhe e aproveitei para lhe perguntar se estava a gostar do livro. Disse-me que sim e que aquele lhe parecia ser o livro mais fiel do autor. O livro em que ele descia um pouco do seu pedestal de homem fora do comum, para se mostrar como ele realmente devia ser. Um homem que amava como todos os outros e que sofria por amor tal como todos os homens, sem ter vergonha de o reconhecer. Eu que até sou bom na arte da palavra, fiquei sem saber o que dizer, porque aquela frontalidade me deixou sem palavras e porque ainda só tinha lido umas trinta páginas, não conseguindo ainda antever o que iria acontecer ao longo da narrativa.
Limitei-me a abanar a cabeça em tom de concordância e senti-me um pouco imbecil perante tanta desenvoltura de raciocínio e aquele à vontade que eu não conseguia ter. Aí, nesse momento, houve uma breve troca de olhares e uns sorrisos pelo meio que me deixaram a mim um pouco mais confiante e a ela um pouco mais iluminada. Confessei-lhe que ia ainda no princípio do livro e que por isso pouco podia acrescentar.

- Sabe o que me incomoda nos homens? – perguntou-me fechando o livro e voltando a pô-lo lá para dentro daquele mundo de coisas.
- É acharem que são fracos apenas porque amam e por isso, para não demonstrarem que tal como nós mulheres, também sofrem por amor, remeterem-se ao silêncio, quando era muito mais fácil que se dessem a mostrar, que não tivessem medo de demonstrar o que lhes vai no coração. Isto para os que têm coração, porque há homens que simplesmente não sabem que o têm Percebe o meu raciocínio?
- Acho que sim – respondi.
É claro que percebia muito bem o que ela queria dizer. Nesse momento, apeteceu-me dizer-lhe logo tudo o que me ia na alma, mas o medo da rejeição, o medo de parecer fraco, fez-me ficar calado. Anunciaram a chegada do comboio dela. Pôs-se em pé e preparou-se para se encaminhar para a linha.
- Que pena ter de ir já – disse-lhe eu nem sei bem como – estava a gostar tanto da nossa conversa…
- Pois, também eu, mas tenho de ir…
Tive vontade de lhe pedir o número de telefone mas faltou-me a coragem. Ela levantou-se finalmente e disse-me:
- Então até depois. Espero que goste do livro.
- Vou gostar. Se você diz que é bom, é porque é.
Ela sorriu, acenou-me com a mão e encaminhou-se para a linha.
Não tirei os olhos dela. Mas por que raio não lhe tinha eu pedido o número de telefone. Afinal não ia pedi-la em casamento, era apenas o número de telefone…
Estava eu naquele dilema infernal, sem saber se havia de ir atrás dela para lhe pedir o número, com o coração a dar-me cada vez sinais mais fortes, enquanto o rabo se recusava a levantar da cadeira, quando, eis que a vejo voltar a arrastar a mala de viagem, na minha direcção. Nessa altura levantei-me para a receber como se já não a visse há muitos anos e feliz por a ver regressar.
- Afinal tenho outro comboio dentro de dezassete minutos. Pára em todas as estações e apeadeiros, mas não tenho pressa para chegar a lado nenhum – disse sorrindo.
Era o tempo que eu precisava para lhe pedir o número de telefone, para lhe saber o nome e aquietar o coração que eu tinha acabado de descobrir. Dezassete minutos…


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