Um anjo passou por aqui... Ana Fonseca da Luz











A mesa estava posta a rigor. A toalha branca, de linho, que cobria a mesa, tinha sido do enxoval da minha avó. A partir do dia do seu casamento, sempre que havia festas na casa velha, essa toalha era posta na mesa. Será que a minha filha mais velha, que será a sua herdeira, a porá na mesa, nos dias em que houver festa, em sua casa? Acho que sim. Apesar de ser uma rapariga moderna, a Margarida é bastante conservadora, porque, tal como a minha mãe havia feito comigo, eu insistia em contar-lhe a história da nossa família e a orgulhar-se dela.
Sobre a toalha branca, o serviço azul da Vista Alegre e os copos de cristal davam à mesa um toque especial, um toque de festa. Os castiçais de prata, presente de uma grande amiga, enriqueciam a mesa, sem, no entanto, a tornar demasiado pomposa. E que ficasse pomposa. Era Noite de Natal.
A ementa era diferente da do tempo da minha avó e, até mesmo, da do tempo da minha mãe. Nesse dia, eu tinha optado por fazer algo de que nós gostássemos especialmente. Assim, a ementa era canja, a sopa preferida da minha filha mais velha, seguida de bacalhau com natas, o prato preferido da mais nova. Depois, leitão assado, o prato preferido do meu marido. E eu, que era a que tinha sempre mais trabalho na organização do jantar de Natal, escolhia os doces de que mais gostava: papos de Anjo e bolo de amêndoas com ovos moles.
Era realmente um dia especial, a véspera de Natal. A lareira estava acesa e a casa tinha um cheiro adocicado, sem se tornar enjoativo. Ao canto, na sala de estar, uma grande árvore de Natal enchia de cor este dia. Mas, o que tinha realmente relevo era, sem dúvida, o presépio. Todos os anos era posto sobre a mesma mesa, mas a decoração era sempre diferente.
Enquanto dava os últimos retoques, a ver se nada faltava, punha o CD do meu compositor preferido, Mozart. Corria a casa, a ver se estava tudo em ordem, se as toalhas da casa-de-banho estavam direitas nos toalheiros, se as colchas das camas estavam sem rugas, se as flores, nas jarras, estavam ainda tão viçosas como de manhã. E, como de costume, tudo estava impecável.
Mozart enchia-me a alma de calma. Mas, para quê nervos? Afinal, era apenas mais um jantar de Natal. Não. Era o primeiro jantar sem a companhia da minha mãe. Ia ficar um lugar vazio na grande mesa. Um lugar vazio, tal como era agora o seu quarto. Passei pelo quarto dela, na vã esperança de a encontrar frente ao espelho, a pentear-se e a pôr mais um borrifo do seu perfume preferido, tal como a tinha encontrado, um ano antes.
- Está pronta, mãe? Os manos estão a chegar.
- Estou pronta. Mas, senta-te aqui, um minuto só.
Sentei-me aos pés da cama, ela borrifou-me com o seu perfume e disse-me:
- Sabes? Um anjo passou por aqui!…
Não compreendi e perguntei-lhe:
- Um quê?
- Um anjo, filhota! Um anjo passou por aqui, minutos antes de tu entrares.
A minha mãe sempre tinha tido paixão por anjos e tinha lido tudo sobre eles. No entanto, nunca tinha visto nenhum. Dizia apenas que os sentia.
- Como foi, mãe? Como sabe que era um anjo?
Falar de anjos com a minha mãe sempre tinha sido uma coisa normal. Costumávamos mesmo passar serões em que não se falava de outra coisa. As miúdas chegavam a preferir deixar de sair, só para ouvirem a avó contar histórias de anjos que só ela conhecia. Durante anos leu tudo o que havia publicado sobre anjos. Um dia, após terminar mais um livro, disse-me:
- Este foi o último livro que li sobre anjos. Já sei tudo. A partir de agora, o que aprender não vai ser através de livros, mas através do coração.
Não a questionei. Mas, adivinhando a minha curiosidade, ela disse:
- Todos temos um anjo. Só não o vemos, se não tivermos um bom coração.
Naquela última véspera de Natal, ela disse-me que um anjo tinha passado por ali.
- Como sabe que era um anjo, mãe? – insisti.
- Com o coração. Vou-te explicar. Olhei para o espelho e não me reconheci. Vi-me menina outra vez e senti o cheiro a charneca. Vieram-me as lágrimas aos olhos e, no peito, senti uma alegria inexplicável. O meu anjo cheira a flores do mato. Tens flores do mato nos teus arranjos de Natal? Não. Eu sei que não tens. Não te consigo explicar de outra maneira. Tens de entender com o coração. O meu anjo passou por aqui, para me dizer qualquer coisa que eu, infelizmente, não consegui compreender. Quem sabe se ele não volta mais tarde?
Nessa noite, depois do jantar de Natal, depois dos pequenos abrirem os presentes e de encher um saco enorme com papéis de mil cores, a minha mãe disse-me que estava cansada. Que se ia deitar. Os netos abraçaram-na com ternura e nós, os filhos, desejámos-lhe, mais uma vez, Feliz Natal.
Ficámos todos na sala, a tomar café e a fumar o último cigarro, enquanto as crianças remexiam nos seus presentes, com satisfação. Já tarde, todos saíram. As miúdas deitaram-se e o meu marido adormeceu no sofá, com as barbas postiças de Pai Natal.
Como tenho um bocadinho a paranóia das arrumações, deitei mãos à obra, para deixar tudo impecável. De repente, o meu coração bateu mais forte e o cheiro a mato e a rosmaninho inundou-me por completo. Um arrepio percorreu a minha espinha e, largando tudo, corri para o quarto da minha mãe. Tinha de lhe contar.
Bati e entrei. A cama estava por abrir e a minha mãe repousava serenamente no seu sofá, perto da escrivaninha. Aberto, no seu colo, estava um álbum antigo, com fotografias já amarelecidas pelo tempo. Era o retrato do meu pai. Compreendi logo que a minha mãe estava sem vida. Apesar de o choque ser enorme, agradeci a Deus por tê-la presenteado com uma morte serena, como ela sempre Lhe tinha pedido.
Hoje, passado um ano, na jarra do seu quarto, pus um ramo de alecrim e rosmaninho. E posso dizer que um anjo passou por aqui.

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