De partida... Ana Fonseca da Luz




Dormia no sofá, a um canto do quarto, apenas iluminado pela luz já fraca do fim do dia. A cabeça pendia-lhe um pouco, pincelada apenas por uns quantos cabelos brancos. A boca, semi-aberta, deixava ver uns dentes ainda sadios, apesar de, durante anos, apenas os ter limpo com um pouco de broa que deixava para o fim das refeições, tal como lhe ensinara o pai. A pasta de dentes era uma das muitas modernices que, durante a sua longa viagem por este mundo, tinha tido a graça de conhecer.

O tempo tinha-se encarregado de lhe sulcar o rosto com rugas vincadas e fundas. Estava magro. Muito magro, porque o desgosto tinha-se instalado no seu coração e nada o conseguia de lá tirar. Era uma dor profunda e silenciosa que lhe corroía a alma e o seu pobre coração, já tão fraco. De que lhe valia agora o dinheiro, se não conseguia juntar todos os filhos à mesma mesa? De que lhe valia ter trabalhado que nem um condenado, pondo sempre em segundo lugar a mulher e os filhos, se agora era esta a paga que a vida lhe dava? De que tinha valido ter brigado com a mulher, quando esta apenas lhe pedia que fosse passar uns dias de férias à terra, com ela e os filhos? Não podia. O trabalho estava sempre primeiro. Muita coisa tinha feito e muita tinha deixado por fazer, porque o trabalho estava sempre em primeiro lugar. Esta era a paga que a vida lhe dava, por tanto ter trabalhado. Antes ser pobre e nada ter para deixar aos filhos, porque assim, quem sabe, talvez a palavra família tivesse outro significado e não significasse apenas desunião e mágoa…

Aproximei-me um pouco mais e pousei-lhe a mão na testa. Não sei se procurava saber se tinha febre ou apenas se aquele coração ainda teimava em bater. Batia. Nesse momento, abriu os olhos e perguntou-me, provavelmente conhecendo-me, mas já não se lembrando do meu nome:

- O que é que se passa?

O seu olhar era distante e já não pertencia a este reino. Era o olhar de um lutador, derrotado pelas muitas voltas da vida.

- Não se passa nada. Durma, que eu estou aqui.

Como se valesse de alguma coisa eu estar ali!…

Morreu no dia seguinte. Nesse dia, finalmente, conseguiu juntar os filhos todos. Pena ser a morte a causa de tão breve união.

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