O VOO DA BORBOLETA ... Ana Fonseca da Luz



Sigo com o olhar o voo colorido de duas borboletas que voam quase a par. Sigo-as até as perder de vista por detrás de uma roseira brava que me embeleza uma das paredes da casa velha e invejo-as. É mais forte do que eu…
Sempre invejei as aves que riscam o céu e as borboletas que o enfeitam. E, embora ninguém soubesse, sempre fui dona de um imponente par de asas.
É certo que nem sempre as mantenho majestosamente abertas, muitas vezes as escondo, as castro, com medo que desatem a voar e eu não suporte a leveza do voo. Muitas vezes lhes aparo as pontinhas, contrariada, é certo, para me manter ao nível do chão, tantas vezes mais assustador do que o céu azul e leve.
Mas a verdade é que se não fossem esses voos tão meus e tão solitários, por vezes não suportaria o peso da vida.
Mas afinal de que me queixo eu?
Que razões tenho eu da vida?
A não ser esta permanente sensação que não vivo no tempo em que devia viver, que nasci num tempo que não é o meu.
Não sei se nasci antes se depois do meu tempo. Sei apenas que este não é o meu tempo, porque se o fosse, esta sensação de vazio que preencho com saudades de coisas que nunca vivi, não me seria tão pesada e permanente.
Parecendo adivinhar o quanto gosto do seu voo, as borboletas voltam a passar rente a mim, ignorando o quanto as invejo, o quanto gostaria de estar no seu lugar, nem que fosse para voar até à roseira brava e voltar, nem que fosse para ter por um breve instante um companheiro de voo.
Acabo por me rir de mim e desta minha mania quase absurda de querer ter asas. De querer provar o ar…
Mas a verdade é que hoje estou angustiada, para quê estar com meias palavras? Para quê desculpas?
Nem mil borboletas coloridas me conseguiriam melhorar o dia, nem que me elevassem no seu voo, me fariam mudar de estado de espírito.
Difícil viver em dias assim. Dias sem sentido nem norte…
Dias repetidos, ausentes de cor.
Dias em que os sentimentos não rimam… Dias em que apenas queremos que a noite chegue para que nos possamos apagar por algumas horas. Para que possamos simplesmente deixar de existir, para que nos esqueçam e para que possamos esquecer. Tudo!
É nestes dias que nos achamos capazes de cometer o crime perfeito. Talvez por sentirmos que nada mais temos a perder.
Detesto deixar coisas por dizer.
Detesto deixar pensamentos a meio.
Detesto este sentimento de impotência que me obriga a ficar anestesiada.
Que me obriga a esconder por detrás de um sorrisinho amarelo.
Desisto de acompanhar o voo das borboletas porque a “senhora” realidade me chama, me traz de volta à terra, pela voz inconfundível de outra senhora, a minha sogra.
- Mas o que é que a menina está aí parada a fazer a olhar para o antes de ontem? O seu marido está a chegar. Largue as suas escritas e vá-se preparar para o receber. Olhe que quando o seu sogro era vivo, eu largava tudo o que estava a fazer, para o receber condignamente.
Largo os meus diários e os meus voos e respondo educadamente “Vou já, Srª. D. Teresa”.
Não posso deixar de rir das palavras dela: “Deixava tudo o que estava a fazer, para receber o marido” como se aquela mulher, além de dar ordens às criadas, fizesse mais alguma coisa na vida.
No entanto, submissa, sempre submissa e infeliz, guardo todos os meus pertences e preparo-me para receber o “senhor” meu marido.
Chega do clube, onde passa todos os fins de tarde para beber um cognac, depois de um dia passado no escritório de advogados que tem na rua mais chique da cidade e cumprimenta-me com um beijo apagado, depois de cumprimentar a mãe, beijando-lhe delicadamente as mãos.
Beija-me na testa e pergunta-me todos os dias com a sua voz monocórdica e falsa:
- E a minha menina, o que é que fez todo o dia?
Odeio que me trate assim como se eu fosse coisa sua, (e não serei?) sem vida ou vontade próprias.
No entanto, respondo-lhe que fiz o costume.
A minha sogra, a viúva negra, como as criadas lhe chamam às escondidas, apressa-se a responder:
- Não sei o que tanto escreve a sua mulher naqueles seus cadernos que nunca larga, em vez de se sentar comigo a ler ou a bordar.
Ela continua a divagar e lá parto eu no meu voo atrás das borboletas que continuam a voar no pátio só para me provocarem, só para me fazerem morrer de inveja.
O meu marido também já não a ouve, porque nunca mostrou o mais pequeno interesse sobre aquilo que escrevo. Bem que às vezes gostava de partilhar alguns dos meus escritos com ele mas, não vale a pena. Jamais compreenderia a maneira como as palavras me enfeitiçam e a companhia que me fazem.
Um dia mostrei-lhe um pequeno poema que tinha acabado de fazer, pensando eu que o iria ler e sentir orgulho da maneira tão simples e harmoniosa como tinha conseguido descrever o que era amar.
- Mas que vulgaridade, Matilde… Esse poema é praticamente indecoroso. Uma mulher do seu nível jamais deveria escrever tais palavras. Não ouse mostrar isso a ninguém. Se quer escrever, escreva, mas guarde para si.
Nunca na minha tão curta vida me tinha sentido tão pequena, tão insignificante, quase vulgar. Nem lhe consegui responder. Limitei-me a fechar o caderno e afastei-me rapidamente para que não me visse chorar.
Nesse dia compreendi que a única coisa que me prendia a ele e àquele casamento, eram um conjunto de normas e preconceitos com que nos enchiam a cabeça, a nós mulheres, desde o dia em que nascíamos.
Como era possível estarmos no princípio do século vinte, e nós mulheres, termos de nos sujeitar a coisas impensáveis.
Não poder mostrar os tornozelos, não poder fumar em público, não poder ler este ou aquele livro, só pelo facto de pertencermos “ao belo sexo” como o meu marido e os seus igualmente acéfalos amigos, denominam as mulheres.
Não. Este tempo não é o meu…
Num dos inúmeros jantares que demos cá em casa para receber as pessoas que interessavam ao meu marido, sim porque para ele não há amizades, há interesses, conheci uma mulher fantástica chamada Lúcia.
Era uma mulher bem mais velha do que eu, andava na roda dos cinquenta, mas de uma beleza invejável.
A minha sogra não a suportava, talvez por ela ser tão bela. As mulheres têm destas coisas, mas era dona de uma imensa fortuna e cliente do meu marido, logo, foi recebida com honras de rainha.
A minha sogra chamou-me para ma apresentar.
A empatia entre nós foi de tal ordem que quando dei por mim, estava a contar-lhe a minha vida e todos os meus sonhos amordaçados.
Enquanto conversávamos num recanto do jardim sob os olhares invejosos da “viúva negra” eu olhava aquela mulher e o charme que dela se desprendia a todo o instante.
Era a única mulher que fumava, tinha um decote generoso sem ser ordinário e usava o cabelo curto, coisa que nesta época era praticamente impensável. Depois toda ela emanava um perfume a rosas que me deixava quase embriagada.
Desde logo me pediu para retirar o “Srª. D. Lúcia” e que a tratasse por Lú. Era assim que gostava de ser tratada pelas pessoas de quem gostava.
Senti que lhe podia dizer tudo. Achei-a até parecida com a minha mãe e quase morri de saudades
Contei-lhe que a minha paixão era escrever, escrever sem parar porque só assim me sentia inteira, completa e feliz.
- Então escreva, querida, escreva, não ligue a esse bando de abutres que a cercam. Lute pelo que quer. Se é que sabe o que quer… Sabe?
- Sei. Quero ser livre. Não gosto que me cerquem, que me controlem, que me digam o que devo vestir, o que devo ler, que me obriguem a pensar como eles. Quero até ser livre para questionar a existência de Deus. Quero fumar sem ser às escondidas, quero usar calças como os homens se assim me apetecer. Quem foi que disse que só os homens é que podiam usar calças, ou fumar? Onde é que isso está escrito?
Quero que os meus poemas saiam da gaveta e lê-los em voz alta porque toda a minha alma está naquilo que escrevo. Sinto-me amordaçada…
Quando levantei os olhos a Lú chorava, tal tinha sido a força das minhas palavras.
- Sabe, minha querida? Ninguém sabe a fera que mora dentro de si. Não se deixe domesticar. Seria até pecado.
Vá buscar um dos seus poemas. O que mais gostar. Vá…vá!
Voltei com um dos meus preferidos, chamava-se “O Voo da Borboleta”.
Lú leu-o em silêncio. Temi que o achasse patético mas apertou-me as mãos e disse-me:
- É até pecado guardar só para si estes bocadinhos da sua alma…
Levantou-se, imponente e todos os olhares masculinos se viraram na sua direcção, como eu a invejei naquele instante e, batendo as palmas, chamou à atenção todos os presentes.
- Meus queridos amigos, gostaria muito de vos ler um breve poema. Será que posso?
O meu marido, sempre atencioso e educado, pousou o charuto e dirigiu-se a ela, dando-lhe a mão e encaminhando-a até ao meio do salão.
As mulheres invejosas, sempre invejosas, cochicharam entre si e os homens renderam-se mais uma vez à elegância da minha nova amiga.
Eu estava a um canto. O coração pronto a sair-me pela boca, os olhos húmidos, quase, quase a chorar.
O silêncio fez-se finalmente sentir e pela voz mais melodiosa que eu conhecia, vi o meu pobre poema ganhar asas e voar, matizado de perfeitas sintonias.
E vi as senhoras de olhares sonhadores e os cavalheiros a saborearem cada palavra como se fosse a última que ouviam.
Toda a gente aplaudiu de pé. Só eu me sentei, porque não podia suportar a leveza da minha alma.
O meu marido beijou-lhe as mãos dizendo-lhe:
- Mas, Srª. D. Lúcia a senhora tem de publicar os seus poemas. Não pode guardar essas tão belas palavras só para si.
Toda a gente concordou aplaudindo a ideia do meu marido.
- Acha? Perguntou com um sorriso sarcástico que só eu percebi.
- Mas claro. Amanhã mesmo mando um editor muito meu amigo ter com a senhora. Ele vai ter todo o prazer em publicar a sua poesia.
- Então, meu caro amigo, ele que venha cá amanhã e eu cá estarei para conjuntamente com a sua mulher, uma vez que é ela a autora de “tão belas palavras”, conforme o senhor mesmo diz, chegarmos a um acordo. O que acha?
O meu marido engoliu em seco e limitou-se a abanar a cabeça em sinal afirmativo. A ”viúva negra” fingida e venenosa, veio em minha direcção e perguntou-se com um sorriso arranjado à pressa:
- Mas por que é que a menina nunca me mostrou os seus poemas? Sabe perfeitamente que a menina é a filha que eu nunca tive e que o que eu mais quero é que seja feliz.
Pela primeira vez o meu sorriso não foi amarelo porque nem lhe consegui sorrir.
Depois dessa noite deixei de voar às escondidas apesar de continuar a voar sozinha.
Mas que me importa? De dia para dia as minhas asas estão mais imponentes e matizadas de azuis que foi a cor que escolhi para a capa do meu livro.
É toda azul e no centro tem uma borboleta multicolor de asas gloriosamente abertas.

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