Um frasco cheio de ilusões... Francisco Valverde Arsénio


Por baixo das pálpebras há um mar de lilases, um cansaço latente pela permanente tristeza, por chorar, e o seu subconsciente ordena-lhe que guarde as lágrimas num frasco como se fora uma poção mágica, que lacre a rolha, que o deite ao mar, que deixe que as águas iluminem o caminho e que a fada madrinha o ampare no balançar das ondas. Passou a mão pelos olhos inchados e sacudiu o cabelo para que todas as mágoas se soltassem, se afastassem da sua memória. Recordou o passado cada vez mais presente e encontrou pontos maus e outros que não eram nem melhores nem piores. Cada um tinha o seu valor, por isso não sentia necessidade de os converter num peso a carregar sobre os ombros. Conhecia-se e sabia de cor cada pedra do caminho. Na sua vida havia de tudo, sol, lua e um mar de libelinhas, sabia também que o amor estava ao seu alcance. Voava, deixava-se voar e sabia os riscos a encontrar de cada vez que abria a porta ao inesperado. Pegou na caneta como tantas vezes fez e escreveu sobre outros mundos, alguns deles impossíveis, mas enfrentou o tempo sem medo. Arrancou os ponteiros ao relógio e era agora senhora de si; permitiu-se sonhar que ele chegara a casa com um frasco de lágrimas que encontrara nas areias duma praia. Ele conhecia-a, sabia dos seus pesares, dos seus desertos, das marcas do avesso da sua pele, de todos os cantos sombrios da alma. Tinha provado do seu desassossego, dos seus oceanos, da sua lua. Ele era deserto onde ela saciava a sede, o espaço que preenchia o vazio, a sombra que a protegia do sol, era o bálsamo para as suas feridas.
Permitia-se sonhar, refugiava-se da vida cinzenta e navegava fora do sonho dentro do próprio sonho. Há um estranho inverno nos seus olhos, há imagens que permanecem descontínuas e o presente deixou de ser agora porque no agora ela nem sequer o conhecia. Nos seus sonhos é a única estrela do fim da tarde e do início da madrugada. Olhou à sua volta e tudo era azul como sempre foi e decidiu que a partir daquele momento só existiria o branco, uma cor que se pode misturar com qualquer outra deve ter a primazia de a encher por dentro. E as paredes ficaram brancas, a manhã era branca e até o lado de fora das janelas era branco. Os sons da água do chuveiro era branco, as vidas eram brancas e até a sua solidão era branca, Ainda por dentro do sonho, abraçou-o cansado do regresso. Viu nos seus olhos o fogo e a chuva mas não se sentiu perdida. Ele era o tempo que não se esquece, que guardara no olhar, a outra dimensão, a intensidade da alma, a sua própria sombra. «Como posso ter esta memória tão forte de ti se não te tenho em mim? Mas vem mesmo sem eu saber e ensina-me de novo a amar.»
As lágrimas que iam enchendo o frasco da poção mágica passavam-lhe pelos cantos da boca, os olhos mantinham a sombra dos lilases e apertou os lábios… «onde estás tu agora, que parte de mim habita em ti?» A ausência na plenitude rasgava-lhe a alma, nunca foram nunca mas nem sempre foram sempre.

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