Os mimos da D. Joaquina... Ana Fonseca da Luz


Era já tarde quando entrei em casa porque o meu lema é “à noite todos os gatos são pardos”, ou parvos, dependendo das circunstâncias. Como sempre, encaminhei-me para o pequeno escritório que improvisara na sala de estar, que era demasiado grande para tão poucas mobílias, e olhei desinteressadamente o monte de correspondência que a D. Joaquina, porteira do prédio e minha mulher-a-dias, já ia para mais de cinco anos, me tinha deixado sobre a secretária. A secretária antiga tinha pertencido ao meu avô e eu tinha conseguido encaixá-la naquele mundo minimalista em que vivia, não porque gostasse realmente do género, mas porque quanto menos coisas tivesse em casa para limpar o pó, melhor para a minha bolsa, porque a D. Joaquina era velha, mas não era parva e se havia coisa em que ela estava actualizada, era nos preços praticados pelas suas colegas de profissão. E assim, euro a euro, a D. Joaquina lá ia aumentando o seu ordenado porque – como sabe Sr. Engenheiro, as coisas estão sempre a aumentar e eu não me governo só com o meu ordenado de porteira – e eu abanava a cabeça, em tom de consentimento e ia alargando os cordões à bolsa porque, passar sem sexo durante uma semana, até passava, mas jamais conseguiria viver sem a ordem que a D. Joaquina impunha na minha casa diariamente e muito menos sem os mimos que todas as noites ela me deixava no balcão da cozinha e que eu devorava que nem um leão, porque estava fartinho do restaurante onde comia, dia sim e dia também.

Por isso, chegar a casa, e dar, ora com uma panelinha de caldo verde e umas pataniscas de bacalhau, ora com uma sopinha de cozido com umas rodelinhas de chouriço e um ossinho de porco, que sempre me faziam lembrar as comidas da minha avó Laura, era a melhor coisa que me podia acontecer ao fim de um dia, só a aturar gente tonta e com a mania de que eram todos poderosos e a quem eu tinha de ir bajulando, para continuar nas boas graças daquele bando de carcaças velhas mal acabadas.
Mas não se podia ter tudo. Todo o dia estava rodeado daqueles abutres sanguinários mas ao fim do mês, quando a transferência do meu ordenado chegava à minha conta e me ia permitindo uma vida de pequeno príncipe, deitava contas à vida e repetia para mim mesmo – já sobreviveste a mais um mês, que venha o próximo!
Sento-me na cadeira em frente à minha velha secretária, que a D. Joaquina diz que é a única coisa de jeito que tenho cá em casa – O senhor Engenheiro bem que podia comprar umas mobílias mais bonitinhas que eu mesma lhe fazia uns naperons para o quarto e para a sala, era só o Sr. escolher as cores – e olho com mais atenção as cartas.

Mas tenho fome.
Quem sabe a D. Joaquina não me trouxe um petisquinho!

- Esta semana vou à terra e vou trazer-lhe umas alheirazinhas que o Sr. Engenheiro vai comer rezando de tão boas que são.
Quem sabe…
Tenho sempre medo de um dia chegar á cozinha e me deparar com uns naperons de renda, se bem que já lhe disse que não era homem de gostar de muitos enfeites. – Isso diz o Sr. Engenheiro. Se visse uns que eu fiz agora para oferecer à minha neta, Paloma Fabiana! – quase fico em pele de galinha, quando a D. Joaquina abre a boca para pronunciar o nome da neta, porque acho que ninguém merece ter um nome daqueles.

- Paloma Fabiana? – pergunto-lhe incrédulo, porque aquilo mais me parece nome de doença rara.

- Quer saber Sr. Engenheiro? A bem da verdade não sei se a menina é Paloma Fabiana se é Fabiana Paloma. Mas o pai gostava de um nome, a mãe gostava de outro e, vai daí não foram de modas, juntaram os dois.
Fiquei esclarecido e simultaneamente estarrecido pelo facto da própria avô não saber ao certo o nome da neta e ainda a ouvi dizer entre dentes – Melhor a menina tivesse ficado Joaquina como eu, que ao menos não é nome de artista de telenovela mexicana.
E naquela dúvida que sempre me assiste com respeito ao nome da infeliz da criança, lá entro na cozinha, pedindo a Deus que me espere lá uma panelinha de qualquer coisa para mitigar esta fome quase constante de comidinha caseira.
Sossego…
Ainda não foi desta que encontrei a minha cozinha, ultra-moderna, violada por uns naperons de crochet e, sobre o bico do fogão, que é praticamente virgem, lá está a panelinha de esmalte preta que eu tão bem conheço e que de certeza esconde mais um petisco da minha boa D. Joaquina.
Não me engano. Desta vez é uma mão de vaca com grão, enfeitada com um raminho de hortelã, que tem um cheiro quase hipnotizante para mim. Olho para o relógio. Quase onze da noite. Horas perfeitas para comer umas torradinhas e um copo de leite. Mas eu sou lá homem para resistir a um petisco daqueles?
Ataco a mão de vaca com grão e acompanho-a com um copo de um tinto alentejano de se lhe tirar o chapéu. Para mim, é Deus no céu e a D. Joaquina na cozinha.
Depois de devidamente saciado, e já com duas pastilhas Rennie na mão, para precaver uma possível azia, volto à correspondência que me espera descuidada sobre a secretária.
Contas e extractos bancários. Fico sempre à espera de um dia chegar a casa e ter lá uma carta de amor. Depois, penso melhor e lembro-me que já ninguém escreve cartas de amor a ninguém.

- Já nada é como dantes Sr. Engenheiro. O meu Joaquim, nunca distinguiu uma letra de um número mas foi com as falinhas mansas, das cartas de amor que pedia a um sobrinho para me escrever, enquanto ele ditava, que ele me levou à certa. O Sr. Engenheiro nem lhe passa pela cabeça as coisas que ele me dizia naquelas cartas. Até com suores me deixavam. Agora não, vão para as boates, com música aos berros onde ninguém se ouve porque a berraria é muita e onde dança cada qual para si. Que jeito tem lá aquilo? Há lá coisa melhor do que dançar agarradinho e deixar as mãos irem escorregando devagarinho? E o pior é que agora são mais eles com eles do que eles com elas, se é que o Sr. Engenheiro me entende…Olhe, sabe que mais? Já não há mais romances como antigamente…
Ei-la!
A azia!
A D. Joaquina muitas vezes me diz – Se o Sr. Engenheiro chegar muito tarde e vir que a comida é muito forte para a noite, não coma que não me parece mal, mas o que quer? É destas comidas que eu sei fazer e já o meu Joaquim, que Deus o tenha, era desta comida que gostava. Olhe que uma vez, uma afilhada nossa que sempre foi pobre e que casou com um homem de muitas posses, convidou-nos para irmos a casa dela jantar. Se visse a comida que nos deram! Um prato enorme com uma fatia de carne toda em sangue e pouco maior do que uma rodela de mortadela, com meia dúzia de ervilhas, um dedal de puré de batata e umas ervas por cima que nem os coelhos da minha sogra haveriam de conseguir tragar. E para sobremesa, uma taça de gelado de limão com um molho encarnado por cima que ainda hoje não faço ideia o que aquilo era, mas que era amargo como o diabo. Escusado será dizer que mal chagámos a casa, tive de ir fazer umas sardinhas albardadas e deitar um pouco de farinha de milho no resto das couves com feijão, para fazer uns crescidos, porque o meu Joaquim nem podia com tanta dor de cabeça, por causa da fome.
Abanei a cabeça e sorri.

– Aquilo era para mangar com a gente, só podia ser. Então gente com tanto dinheiro e dão-nos tão pouquinha comida para comer. Mas sabe o que fiz? Passado umas semanas convidei-os para cá virem a casa comer e fiz-lhes um cozido à portuguesa de se lhe tirar o chapéu. Havia de ver aquela gente a comer…
Ataco a azia e tomo uma, duas pastilhas Rennie e parece-me que estou no velho reclame de televisão que tão bem conheço.

“Azia eu? Tomo logo uma, duas pastilhas Rennie…”

Abro a porta do quarto e sobre a cama está um pequeno pacote embrulhado em papel pardo à moda antiga e atado com um cordelito.
Abro-a amanhã. Pode ser alguma coisa para me chatear e depois de um petisco daqueles, ninguém tem vontade de se chatear.
Ou Anthrax!
Pode muito bem ser Anthrax. Trabalhado para aquela gente que tem tantos inimigos, é bem possível que algum cliente menos satisfeito com alguma obra, tenha mandado um pacote com Anthrax para os donos da empresa e eu esteja a comer por medida.
Olho para a chaise-longue que tenho aos pés da cama e sobre ela está toda a minha roupinha passada a ferro.
A D. Joaquina hoje fartou-se de dar ao dedo.

- O Sr. Engenheiro até parece que é pobrezinho, Olhe que eu e o meu Joaquim éramos pobres quando casámos e tínhamos muito mais mobília do que o senhor tem aqui no quarto. Lembro-me bem da nossa caminha de ferro e do guarda-fatos alto, com um espelho grande, onde nos víamos dos pés à cabeça. Sabe o que me lembra o seu quarto com esta cama que é só um colchão no chão e estes móveis rasteiros e direitos? Um quarto que vi uma vez num filme que se passava lá para um país em que todos tinham os olhos bicudos. Ou chinês ou japonês, isso já não posso afiançar. Só que o senhor Engenheiro pusesse uns naperonzinhos em cima daquele móvel, que mais parece uma mesa de desmanchar os porcos e a que o Sr. chama de cómoda, o quartinho ficava logo com outro aspecto.

- Pois sim D. Joaquina, mas não gosto de enfeites, já lhe disse.

Volto à sala para apagar as luzes porque hoje não estou com disposição para ver televisão. Estou cansado, a semana ainda só vai a meio e além disso a mão de vaca com grão apesar das milagrosas Rennies, começa a falar comigo. Se calhar, devia de ir fazer uma caminhada até ao fim da avenida e não ir-me deitar de barriga tão cheia. Mas a preguiça prevalece e fico em casa.
Já não se fazem Rennies como antigamente…
Lá me dispo deixando a minha roupa espalhada pelo quarto, como sempre.

- Esta sua última namorada, desculpe que lhe diga, não servia para si. – recordo sorrindo a última conversa que tive ontem com a D. Joaquina – Onde já se viu uma coisa destas? Então o Sr. é que lhe fazia a comida aos fins-de-semana, enquanto ela ficava com o nariz enfiado todo o santo dia naquelas revistas sem tarilho nenhum. E pensar eu que nem a sua roupinha ela lavava. Ainda bem que o Sr. Engenheiro acordou a tempo, ou estava bem arranjado porque ela fazia de si gato-sapato. Já a outra, aquela alta e de nariz empinado, que mais parecia o cavalo do Mestre Batista, se quer que lhe diga, o que ela queria mesmo era o seu rico dinheirinho. O Sr. Engenheiro não me parece que tenha sorte com as mulheres. Já lhe conheci umas cinco ou seis desde que lhe faço limpeza aqui em casa e nenhuma se aproveitava. Muito pintadas, roupas muito justas…Olhe o Sr. é tão bom, que merece bem melhor.
Acabo por soltar uma gargalhada porque tenho de concordar com a D. Joaquina. Todas elas eram boas para dar umas curvas, já para uma relação séria… Se bem que eu não estou interessado em nada de sério. Lá para os cinquenta, quem sabe!
Deito-me finalmente naquilo a que a D. Joaquina chama um colchão no chão e a que eu chamo de “sommier” e preparo-me para dormir. Amanhã é dia de guerra outra vez e estou sem namorada. Custa mais o tempo a passar…

- Sabe como é que o Sr. Engenheiro sabe quando é que encontrou uma rapariga séria para casar? Quando ela não se entregar logo de mão beijada. Olhe que no meu tempo já havia muita rapariga sem juízo mas eu, e sabe Deus o que me custou, porque o meu Joaquim era um rapaz bonito e muito fogoso, resistir às investidas dele. Bem que ele tentou. Chegou mesmo a dizer que me largava se eu não lhe desse o que ele queria, e eu disse-lhe: – Pois deixa-me que nunca hás-de encontrar uma que goste tanto de ti como eu. – E ele para me ter, teve de casar comigo. Agora, é uma pouca-vergonha. Parecem cadelas com cio e os homens, coitados que pensam que são espertos, caiem na conversa delas em menos de um fósforo. Abra os olhos Sr. Engenheiro senão, um dia destes uma cola-se em si que nem um carrapato e quando dá por si, está casado com ela e depois divorciado dela, e ela dona de tudo o que é seu. Não lhe pareça mal estas minhas palavras, mas é que lhe quero quase como a um filho.
Esta D. Joaquina é um tratado mas bem vistas as coisas não deixa de ter razão. Parece mesmo que só atraio mulheres destituídas de cérebro e que só pensam no bem bom que lhes posso proporcionar. Tenho que me manter atento aos ensinamentos da D. Joaquina.
Deito-me, apago a luz e olho uma última vez para o relógio. Meia-noite. Lembro-me agora. Faço anos. Trinta e nove anos. É então que me lembro do pequeno embrulho que tinha no quarto e que não me apeteceu abrir. Levanto-me porque sou acometido por um ataque de curiosidade aguda.
Desembrulho o pacote, impaciente.
Quase deixo de respirar mas acabo por soltar uma sonora gargalhada. De dentro de uma caixa de sapatos já velha, número 37, salta-me um jogo de naperons preto e branco a fazerem “pendant” com a mobília do meu quarto.
Não tenho escapatória possível. Junto aos naperons, está uma folha de papel onde posso ler :

“Parabéns Sr. Engenheiro. Espere que goste. São para o seu quartinho. Para o Natal, se Deus quiser, ofereço-lhe uns para a cozinha.”

Impossível resistir a tanta ternura. Ponho um sobre a mesa de desmanchar os porcos, conforme diz a D. Joaquina, e os outros nas mesas-de-cabeceira.
O efeito é terrível, diria mesmo, medonho. Mas não há raios que mos tirem dali tão cedo.
Mais um mimo da D. Joaquina…

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