De olhos fechados... Ana Fonseca da Luz


Desta vez não vou praguejar, nem sequer vou ficar mal com Deus, como é meu costume, quando a vida não me corre de feição. Que culpa tem Deus desta minha inércia, desta minha falta de iniciativa, desta minha falta de auto-estima?
Acredito piamente que Deus, quando me pôs no mundo, e porque gostava realmente de mim, me enviou para esta vida com um itinerário numa mão e com um roteiro na outra. Tão fácil! Bastava seguir o mapa e dizer as falas do guião. Mas não! Teimosa como só eu, aposto que, na primeira curva da vida, deitei uma olhadela furtiva ao itinerário e ao guião e, de teimosa e convencida, deitei tudo para o caixote do lixo que encontrei mais perto. E aí estava eu. Por minha conta e risco, sem saber que estrada seguir e que palavras dizer, no momento de abrir a boca.
Estava finalmente satisfeita. Aí, e por ficar um pouco desiludido, por eu ser pobre e mal agradecida, Deus resolveu fechar-me os olhos. Deixei de conseguir distinguir quem me queria bem, de quem me queria mal. Quem gostava de mim e quem apenas parecia gostar.
Não me dei por vencida. Fui de beco em beco, ignorando as feridas abertas, que iam ficando no meu corpo e na minha alma. Caía, para me levantar logo de seguida, apesar de coxear e das feridas demorarem a cicatrizar. Por vezes, e quando via que seguia por caminhos escuros e escusos, lamentava ter deitado fora o meu itinerário. Contudo, nem mesmo assim tinha coragem de lamentar em voz alta. Não queria que Deus percebesse o quanto eu sabia que tinha feito mal. Antes revoltada, que resignada! Mais tropeção, menos tropeção, a vida ia correndo e eu correndo na vida, sem um guião certo para seguir. Limitava-me a deixar a vida correr e corria atrás de um comboio que não passava, ou que passava e eu não via, por ter os olhos fechados.
Um dia, cansei-me. Encostei-me a uma esquina da vida, que só eu é que via, e chorei. Pela primeira vez, lamentei em voz alta. Ingenuamente, pensei que Deus, mal me visse arrependida e desejando ter o meu itinerário e o meu guião, me facilitaria a existência e me entregaria, de mão beijada, uma vida nova, a estriar.
Nada. Esperei em vão. Deus não ouviu o meu lamento. Talvez tivesse ouvido. Talvez tivesse sido eu que não estivesse atenta e não tivesse recebido a informação de que agora, e porque os tempos já fossem outros, talvez já não viesse em forma de itinerário e guião escritos em papel, mas sim numa disquete.
Soube mais tarde, depois de muitas vezes cair e de muitas vezes me levantar, que Deus me tinha segredado, ao ouvido, para eu destapar os olhos. Pena não estarmos com atenção ao que nos dizem os anjos, ao ouvido.
Um dia em que pensava não me conseguir levantar mais, uma menina passou por mim, deu-me a mão, ajudou-me a levantar e disse-me ao ouvido:
- Tira a venda dos olhos, para me veres. Eu sou a Inês. A tua futura neta.
Então, uma força abriu-me o peito e iluminou-me os olhos. Vi uma menina, doce, meiga, com uns olhos escuros e bonitos. Beijei-a na ponta do nariz. Ela riu e esfregou a ponta do seu nariz no meu.
- Era assim que davas beijinhos de esquimó à minha mãe, quando ela era pequenina. Não desistas agora, avó, porque quando eu nascer, também quero desses beijinhos.
Levantei-me e apercebi-me de que já via. Via quem me queria bem e via um caminho que reconheci como sendo aquele que Deus me tinha traçado, no meu itinerário inicial.

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