O que fica quando parto?... Ana Fonseca da Luz



O QUE FICA QUANDO PARTO?

- O que fica, quando parto?
Interrogas-me tu, sempre distante e como se eu fosse dona de todas as respostas.
- Quando partes? Mas, quando partes para onde?
Contigo é sempre tudo tão vago, que tenho sempre medo de não te perceber, ou de te interpretar mal.
- Não sei explicar… é esta minha sensação de que estou sempre de partida, como se realmente não pertencesse a lugar nenhum. Parece-me sempre que estou de viagem…
Depois, voltas a perder o olhar em alguma coisa que só tu vês e deixas-me novamente sem graça e preocupada por, mais uma vez, não ter resposta para a tua pergunta.
Brincas com as mãos, num gesto nervoso e acaricias-me a cara com o olhar. Eu sorrio, placidamente, porque é isso que esperas de mim, e porque não sei ler nos teus olhos senão inquietude e medo.
- O que fica?
Deixas a pergunta no ar e eu esforço-me para não chorar, para não te perder, mais uma vez…
Depois, levantas-te e percorres a sala, de cabeça baixa. Eu fico imóvel, à espera de que voltes outra vez para este mundo, para mim.
Voltas!
Deitas a cabeça no meu regaço e permaneces como que adormecido.
Acaricio-te a cara, os cabelos, a linha da orelha e o contorno do nariz.
Sorris!
Ganho alento e pergunto-te, bem rente ao teu ouvido, em surdina, para te acordar desse mundo que é só teu e onde eu queria entrar, nem que fosse só uma vez para, assim, talvez te compreender:
- Onde estás agora?
- No céu – respondes feliz, como há muito não te via – e é aqui que gosto de estar, no calor do teu regaço. Aqui nada me falta. Nem tenho vontade de partir. O que fica quando eu parto? – voltas a perguntar, olhando-me, ansioso, no fundo dos meus olhos, como se eles fossem a porta que procuras para entrares e saíres, sempre que queres.
Olho-te insegura. Não tenho a certeza se compreendi a tua pergunta, mas a minha vontade de te acompanhar neste bocadinho em que estás aqui e em que és todo meu é tão grande, que te respondo num fio de voz, para não te assustar.
- Quando partes, deixas um rasto. Um rasto que só eu vejo.
Pareces feliz com a resposta, mas insistes:
- E como é esse rasto? A que cheira? De que é feito?
Respondo, sem pressa, mas apressada. Não te quero perder. Tenho de te responder, antes que partas novamente.
- O teu rasto… o teu rasto cheira a saudade e é feito de algodão doce. Daquele que comíamos sempre nas feiras.
Passas a língua pelos lábios, num gesto guloso, como se estivesses naquele preciso momento a saborear o algodão colorido feito de açúcar.
- E mais? Conta-me mais… que mais fica?
- Ficam-me lágrimas salgadas no rosto. Fica-me uma dor profunda no peito e um rasgo de alto a baixo na alma.
Levantas-te, de um salto. Quase tenho medo de ti. Voltas a percorrer a sala num passo certo, tão certo como a cadência dos minutos que escorrem do relógio que temos na parede. É como se ele medisse o tempo que nos separa da nossa realidade e daquela realidade que só te pertence a ti e onde eu nunca consigo entrar.
- Volta, – digo-te – deixa-me que te conte mais. Não queres saber mais coisas?
Voltas para o meu regaço, para os meus olhos e para esta nossa existência que ninguém percebe e que tantos condenam, talvez por não compreenderem…
Encostas carinhosamente a cabeça no meu peito, como se fosses outra vez pequenino e, neste momento, é assim que te sinto: pequeno, frágil e uma vez mais, só meu.
- O teu coração bate tão certinho. Como consegues que bata assim?
Olhas-me indefeso e inseguro. Ou serei eu que estou insegura?
- Quando estás aqui comigo, o meu coração aquieta-se. – respondo-lhe, baixinho, para que ele possa continuar a ouvir o bater do meu coração – É por isso que bate certinho. Porque está feliz e porque sabe que, batendo certinho, te deixa também a ti feliz.
Agarra-me a mão com uma delicadeza extrema e beija-me os dedos, um a um.
Há muito tempo que não fazia isto e o meu coração enche-se de uma esperança que logo morre, quando me volta a perguntar:
- O que fica quando parto, além das lágrimas que choras e desse rasgo que te faço na alma? Diz-me, mesmo que me faça sofrer, diz-me, agora que estou aqui…
Perco toda a minha serenidade tão bem ensaiada e choro por mim, por ti, por nós.
Lambes-me as lágrimas com beijos de que tenho tantas saudades. E não consigo parar de chorar.
Trocamos de posições, porque agora estás aqui comigo. Não sei quanto tempo vai durar este teu permanecer, mas preciso que sejas tu agora a dar-me colo.
Agora sou eu que apoio a cabeça no teu regaço. Quase me afogo nas minhas lágrimas… São tantas!…
- Não chores. Queres que te diga para onde vou, quando parto? Queres saber o que deixo, quando parto?
Não consigo responder.Limito-me a acenar a cabeça, em sinal afirmativo.
Encosta a sua cabeça ao meu ouvido e diz-me assim, baixinho, porque sabe que eu gosto que me sussurre ao ouvido:
- Quando parto, não deixo nada, porque te levo sempre comigo e tu és tudo o que tenho… Para onde parto? Não sei. Sei apenas que parto, porque me chamam, porque sou preciso noutro lado. O meu rasto é, como tu dizes, feito de saudades de um tempo que nunca vivi, de cheiros que não existem e de sabores parecidos com os dos teus beijos. Não tenhas pena de mim… nunca estou sozinho, levo-te sempre comigo.
Adormeço embalada pelas tuas palavras sussurradas ao ouvido e que me fazem tanta falta.
Quando acordo, minutos depois, já partiste novamente. Passeias pela sala, contando os passos, olhando ora para o relógio, ora para mim. Distante e tão perto…
Alegra-me saber que, no teu mundo, naquele mundo em que eu não consigo entrar, estou sempre contigo.
Sorris-me, despreocupado e ausente e eu retribuo o sorriso, com esta minha alma novamente rasgada que sabe a algodão doce.
O que fica quando partes?
Fico eu aqui, de regaço vazio, à espera que voltes um bocadinho para o meu céu…

A. Luz

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