Eu até te adivinho... Ana Fonseca da Luz


É escusado esconderes-te, eu até te adivinho…
Estou de costas para ti, debruçada sobre a tela ainda em branco e consigo sentir os teus olhos na minha nuca.
Engraçado como pensas que não te presto atenção. Como pensas que me és indiferente. Sempre pensei que me conhecesses melhor…
A alça do vestido cai-me despreocupada do ombro nu e sinto que o teu coração se esfrangalha. Gosto de te saber assim, impaciente, expectante e perversamente meu.
Há anos que nos une uma amizade sem tamanho, desde crianças, não é?
São tantos os anos e tanta a cumplicidade que eu te adivinho, da mesma maneira que tu me adivinhas a mim.
Agora mesmo, adivinho que te morre uma pergunta na garganta e, para te facilitar a vida, viro-me e olho-te nesses olhos verdes que são a minha perdição e que tu, afinal, não sabes.
- Sabes o que quero? – perguntas-me, cheio de uma coragem que não é vulgar em ti. E eu, porque tenho medo de saber o que queres, respondo-te, em tom brincalhão e disfarçado:
- Ó miúdo, sei lá o que queres…
Entristeces e ficas corado. Se soubesses como gosto de te ver assim, corado, quase indefeso!
Tenho pena de ti, ou de mim, e largo a tela, onde morre apenas uma pincelada de azul, sempre o azul, e sento-me a teu lado, fingindo um poder que não tenho. Coras mais um pouco e eu sorrio.
Na cadeira de baloiço, com os pés nus e com a teimosa da alça sempre a cair-me, e tu a gostares, pergunto-te:
- Diz lá o que queres!
- Nada, estava só aqui a olhar para ti e a tentar lembrar-me de como nos conhecemos. Conta-me como foi.
- Mas eu já te contei tantas vezes…
- Eu sei, mas gosto da maneira como contas as coisas, parece que contas uma história. Conta lá outra vez…
É tão bonita esta nossa amizade! Tão desinteressada e genuína!
- Então, deixa ver se me lembro…
- Eu estava a brincar em casa da Nônô e tu passaste, de charrete, com o meu amigo Zé. Tu estavas muito bronzeado, tinhas uma franja linda, que te morria em cima desses olhos verdes. Aliás, não sei se já te disse, mas esses teus olhos tiram-me do sério…
Voltamos a rir com vontade e tu, contrariado, voltas a corar. Acho que coras de propósito, só porque sabes que eu gosto.
- Mas adiante… Quando te vi, de fugida, na charrete, com aquele cabelo comprido e escorrido, pensei que fosses cigano e, no mesmo instante, morri de amor por ti. Bem que a Nônô me chamou para brincar, mas eu tinha perdido a vontade e a tua imagem fugidia não me saía da memória. E pronto, foi assim que te conheci!
- E depois? Conta mais…
- Bem… depois, fiquei doente de amor por ti e tu de amor por mim. Ao fim e ao cabo era o primeiro amor. Sabes como é, marca para sempre.
Sempre gostei de contar histórias e tu de ouvires. Nem sei como tens pachorra para me aturares…
Adivinho-te mais uma pergunta e antecipo-me, para que não cores mais uma vez.
- Queres saber por que acabou? Mas não acabou!… O primeiro amor nunca morre. Por mais amores que tenhamos, por mais caminhos que percorramos, há sempre uma luzinha que, de repente, se acende, ou porque ouves uma música que te lembra esse tempo distante, ou porque um cheiro esquecido te remete até esse passado.
Volto à minha tela, porque, de repente, quase entristeço e uma sintonia de azuis e violetas nascem, criando uma combinação perfeita de cores e traços abstractos.
Como a música está para as nossas vidas, como o ar para os nossos pulmões, e como precisamos de quem nos salve, quando não sabemos o que dizer mais um ao outro, para que não transpunhamos aquela barreira invisível que nos separa e nos une, levantas-te e enches a sala de música.
- Gosto de música sem palavras! Já pensaste? Assim podemos pôr-lhe as palavras que quisermos…
Escolhes-me então uma música sem palavras. Também tu me adivinhas…
Esta é a vida que sempre sonhei.
Sem nós, só laços…
Sem ter de filtrar as palavras, os gestos…
Sem teatros e encenações…
Numa casa que é só minha, onde te recebo sempre que te sinto a falta. E que falta eu sinto de ti às vezes! E do verde dos teus olhos tímidos, que combina tão bem com a bravura do mar que todos os dias me entra pela porta, pela janela, pelos poros…
Na tela virgem de brancura, nasceu um bailar de corpos que se adivinham.
Agora és tu que estás, de pés descalços, na minha cadeira de baloiço. Começa a ser costume, os dois, descalços pela casa, para assim podermos sentir melhor o que nos cerca.
A tijoleira cansada já conhece o nosso ritmo.
Eu entregue às minhas telas, que, vendo, mais tarde, sem qualquer dificuldade, no terraço da minha casa e onde passa tanta gente e tu, de óculos na ponta do nariz e que te ficam tão bem, entregue à tua escrita silenciosa e rica em imagens, que mais tarde discutimos, em frente à lareira, enquanto a noite chega mansinha e silenciosa.
Rompemos com o passado. Deixámo-lo lá atrás, no tempo em que fazia sentido. Para o nosso presente, trouxemos apenas as histórias que te invento e que tu mais tarde passas para o papel, ora em prosa ora em poesia.
Adivinho agora o teu abraço que me espera. Impaciente, doce…
Entardecemos os dois, serenamente. Os anos de juventude ficaram já há muito lá para trás. Mas somos felizes assim. Este é o nosso tempo!
Largo a tela, a meio, para te olhar.
Lá estás. Nos teus 60 anos, de óculos na ponta no nariz, para que te consiga ver sempre o verde do olhar, t-shirt branca, bermudas por cima dos joelhos e os pés descalços bem assentes no chão da minha tijoleira cansada.
O que será que escreves?
- Queres saber o que escrevo? – perguntas-me, sorridente, com a lapiseira toda mordida entre os dentes. (nunca te habituaste ao computador, continuas a escrever tudo à mão)
- Não. Eu até te adivinho… Escreves sobre aqueles meninos que se conheceram, numa tarde quente de verão. E que foram felizes e infelizes. E que tinham dias em que viviam, outros em que sobreviviam…
Largas a lapiseira roída e eu a tela inacabada.
Adivinho agora o teu abraço perfumado e tu adivinhas-me o que nunca te direi… Não te digo nada, porque, no nosso caso, o nada é tanto…

Nenhum comentário:

Postar um comentário