A falta de amor gasta o amor... Francisco Valverde Arsénio


As mãos ainda insistem em se estenderem sobre a mesa procurando-se, há uma necessidade involuntária de resistir aos impulsos mas o coração desprende-se do peito. Não há palavras, todas elas caíram no precipício dos carinhos outrora trocados. Nos dedos ainda há resquícios dos planos prometidos mas nunca alcançados e aquele sabor a aventura perdido na memória do tempo. As mãos ainda se procuram, e nos lábios secos pelo silêncio assoma a última frase escondida: «a falta de amor gasta o amor».

Desvia os olhos para o vazio da sala e procura um canto. É ali que gosta de estar, gosta de observar as pessoas e fazer a história de cada uma delas. Ali, no canto, sente-se segura e ninguém repara nela. Ainda sente nas mãos as outras mãos, sabe que o corpo está ali defronte duns olhos gastos pelo desvio dos olhos dela e acomoda-se naquele refúgio escolhido pela mente. Humedece os lábios para lhes dar brilho e apercebe-se de que alguém, tal como ela, procurou o outro canto. Os olhares cruzam-se mas não se fixam, aperta os dedos nos outros dedos e sente o corpo agitar-se por dentro. Os olhos tornam a circular e agarram os outros pelas pupilas, os pequenos focos de luz dispersos no chão não conseguem disfarçar o seu pensamento e deixa-o voar numa mensagem telepática.

Desprende-se dos dedos que prendem os seus e dirige-se ao outro lado da sala, puxa a porta e não olha para trás, mas sabe que cada gesto seu ficou desenhado nos pequenos focos de luz mortiça. Abre a porta do carro e descansa a cabeça sobre o volante. Não faz frio nem calor, não é noite nem dia, a porta abre-se e ele entra, o motor toma vida e perdem-se na estrada. O silêncio dela multiplica-se no dele, apenas os olhos se abraçam de vez em quando. Ela tem um olhar doce e uns lábios que apetece beijar e deixa que outros dedos se apertem nos seus e se fundam as mãos. Por entre um sorriso, ele esboça uma palavra logo travada num gesto dela… para quê falar, para quê saber o nome, para quê saber quem é? Saiu da estrada, parou o carro e beijou-o como se quisesse roubar-lhe todas as palavras da boca, depois sim… olharam-se pela primeira vez. O seu sorriso terno e olhar apaixonado desnudaram-na por inteiro, compreendeu que o amor é feito de momentos vivos, cheios de alma e que a vida é como uma música aleatória. Colocou novamente os olhos na estrada e as mãos no volante, fechou os dedos para que o abraço dado não lhe saísse dos ombros, para que ficasse no seu corpo cada instante em que outro corpo lhe tocara.

Abriu os olhos no meio da semi-escuridão dos pequenos focos de luz da sala, ainda tinha nas mãos aquelas que procurara por cima da mesa, esboçou um sorriso ao contemplar o outro canto vazio, recordou a frase «a falta de amor gasta o amor» e soube que não era ali o seu lugar.



Nenhum comentário:

Postar um comentário