Não me empurrem para a Vida... Joaquim Pessoa
A maior das maravilhas é viver mas não me empurrem para a vida sem que eu queira. Não me dispam, não me vistam, não me lavem sem que me apeteça. E não dêem números às almas, às coisas que são mais importantes, não atribuam um número à esperança, outro à minha angústia e outro à liberdade, ou um só número para tudo o que sou e para tudo o que sinto. Um número tatuado na pele humana da notável condição de ser pensante. Não afoguem a água. Não aqueçam o sol. A maior das melhores maravilhas é viver sem profissionais do empurrão. Os que esperam lucrar alguma coisa com a queda, chegar-se à frente no gabinete das soluções precárias. Não quero que me convidem nem me impeçam de viver como gosto, como quero, como espero, ou de outra forma qualquer. Não se ponham na minha frente, nem me empurrem. Deixem-me caminhar como eu quiser, se eu quiser. Deixem-me pensar como eu quiser, se eu quiser. Deixem-me, apenas. Não me segurem. Quero escolher. Quero ser o que bem me apetecer! Formidável, amável, doente, diferente ou indiferente. Permitam-me que escolha, que faça apenas o que me der na bolha, que diga porra!, basta!, vão-se embora! e deixem-me ficar. Quero permanecer caído, traído, vencido, emparedado, ou sacudir de vez a água das traições e ferrar o dente na mentira, gritar se fôr preciso. Mas fazer doer quando morder. Não me toquem, não me abracem, não me finjam sentimentos. Há momentos que não posso suportar. Deixem-me ser como o mar, como o deserto: ser perto ao longe e longe ao perto. Ou ser, apenas ser. O que eu for capaz, afinal, o que eu quiser, porque quero, porque posso, porque de nada serve querer mudar-me. Não me toquem como se eu fosse uma bola de cristal, uma cobra, uma barata, uma coisa, um animal. Deixem-me estar sozinho. Assim, sozinho, tão sozinho que não precise de ninguém, muito menos de quem se sente no direito de empurrar. Ou impedir. Não me façam um dos vossos, um previsível, um sensível à rotina das esperadas pulsações. Não quero dar, nem quero que me dêem soluções. Nem sequer convosco conversar ou fazer parte seja do que for. Retirem-se. Retirem-me a vergonha de me estar a transformar no que é pior que tudo e eu não mereço: no número 103 420 894. Por favor, é isso, só isso, que vos peço.
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