Retrato inacabado... Ana Fonseca da Luz

RETRATO INACABADO Resolvi fazer o teu retrato a carvão. Sentas-te dispersa, longe do mundo onde vives e pousas para mim, só para mim, porque só eu te consigo ver como tu realmente és. Tenho dificuldade em te desenhar porque apesar de estares na ponta do meu lápis, tal como estás dentro do meu coração, e de aparentares serenidade, estás inquieta…ausente. Contudo, consertas o cabelo, já que o teu coração não tem conserto e a tua alma não te pertence, humedeces os lábios num jeito sensual e ao mesmo tempo tão natural e colas os teus olhos nos meus olhos para te tentares ver dentro deles como se eu fosse o teu espelho. E não serei? Depois, sorris-me com esse sorriso angelical e diabólico, que te fica a matar e perguntas-me se estás bem assim. Tenho dificuldade em me concentrar porque não é todos os dias que te tenho assim tão inteira, tão presente. Mas inconstante, sempre inconstante, levantas-te e dizes que não queres que te pinte. Que queres apenas que o teu rosto fique gravado na minha memória e só para mim. Entristeces. Entristeço contigo. Baixas os olhos como se te procurasses e não te encontrasses. Estendo-te a minha mão em teu auxílio, para que saibas que nunca estás sozinha. Para que percebas que apesar do segredo que nos une e que todos os dias nos separa mais um bocadinho, eu estou aqui, por ti e para ti. Foges do abraço que te quero dar e num gesto de desalento, os braços caiem-me ao longo do corpo, enquanto o lápis me balança, indeciso, ente os dedos. Colocas-te numa posição quase infantil sentada, com o queixo apoiado nos joelhos e com os cabelos revoltos, quase selvagens fruto do abraço tão apertado que te dei. Sob o lençol, adivinho-te o corpo, ainda suado e uma alma transparente que não dás a ninguém, nem a mim que te quero tanto. Começo por te desenhar o nariz, o recorte da boca, tão minha… Depois os olhos, os teus olhos que estão pendurados nos meus, como eu gosto e a linha do pescoço tão suave, tão apetecível. Consertas-te melhor e eu tenho medo que te canses da tanta quietude e que desistas de posar para mim. Mas não…Continuas assim, mulher-menina. Depois…Depois desenho-te o peito trémulo, tão trémulo como a minha mão e tu sorris. Olhas o relógio que está sempre presente nos nossos encontros e que cronometra o nosso amor ao minuto, ao segundo, sem se apiedar do tanto que fica por dizer, por fazer, por viver. Começas a ficar inquieta, angustiada… É como se já cá não estivesses, como se já tivesses saído pela porta a correr e me deixasses sozinho até não sei quando. Mesmo assim, finjo que não vejo a tua preocupação com o tempo e continuo a desenhar-te adivinhando o teu corpo sob o lençol. Tens os olhos tristes. Já não são os mesmos olhos que pintei há bocadinho. São os olhos com que sempre te despedes de mim. O lápis, parecendo adivinhar que chegou ao fim da sua tarefa, deixa que se lhe parta o bico. Olhas-me em silêncio e dizes-me que tens de ir. Antes de saíres, envias-me um beijo com a ponta dos dedos, em jeito de menina e eu retribuo do mesmo jeito, porque não tenho coragem suficiente para te implorar por palavras para que fiques. Que tudo se há-de compor. Que é ao meu lado que deves ficar. Olho o retrato inacabado que repousa junto ao lápis sem bico e uma sensação de fim de acto, invade-me entristecendo-me. Podia até acabá-lo porque te sei de cor, porque não preciso da tua presença física para que te possa desenhar mas, não seria a mesma coisa. Vou esperar que voltes. Se não voltares mais, esta será a minha mais valiosa obra de arte, aquela que não tem preço. Mais tarde, sozinho, relembrando aquela tarde, apercebo-me por pequenos gestos e palavras tuas, que talvez não te volte a ver mais, se assim for, não é só o teu retrato que fica inacabado, porque a nossa história, nunca terá fim.

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