Silêncios... Ana Fonseca da Luz


Quantas vezes te pedi?
Quando ainda falava, quando ainda pensava que a morte estava longe, apesar de muitas vezes a sentir por perto, quantas vezes te pedi para que não me deixasses a morrer numa cama de hospital?
E quantas vezes me tranquilizaste, com um sorriso, porque simplesmente não tinhas coragem para me dizeres, com palavras, que eu podia ficar descansada?
E agora aqui estou, nesta cama de hospital, onde todos os dias, religiosamente, me visitas duas vezes por dia, e onde vens simplesmente para me dares a mão e me penteares com a ponta dos dedos.
Por que raio mal falas comigo?
Fala! Eu oiço-te! Só não te posso responder. Quero, mas não posso. Esta dor mortal que me mantém neste sono indesejado não me deixa responder-te. E tanto que eu tenho para te dizer!…
No outro dia, abri os olhos, por um fugaz momento, porém, o mais feliz de toda a minha vida. Foi como se toda a minha alma se iluminasse quando, durante aqueles tão breves instantes, abri os olhos e vi a luz do sol entrar pela janela que está mesmo coladinha à minha cama.
Meu Deus, como em tão pouco tempo me arrependi de tudo o que não fiz!…
Fiquei inundada de uma esperança agridoce de que voltaria a sair dali, que voltaria a falar, que voltaria a respirar o ar poluído de que tantas saudades tenho. Mas foi breve o momento, tão breve como o bater das asas de uma andorinha. Logo os meus olhos se voltaram a fechar, ficando apenas presente o sentido da audição que mantenho intacto. Antes não ouvisse, porque, se assim fosse, o meu sofrimento seria bem menor.
Voltei a cair nesta escuridão onde estou encerrada, há tantos dias que já lhe perdi o conto e de onde, provavelmente, nunca mais vou sair.
Se ao menos tivesses coragem de fazer aquilo que tantas vezes te pedi, em vez de te limitares a chorar e a ficares em silêncio. Se soubesses o que me custa sentir a minha alma prisioneira neste corpo mirrado, nesta muralha que não consigo transpor …
Anseio sempre pela tua visita, e até mesmo pelo teu silêncio que tanto me dói e a ti também, que eu sei…
Ontem à tarde, deste-me a mão, mal chegaste, e afagaste-me a cara devagarinho, tão devagarinho que me tocou o coração. Este coração que tanto te ama, que te amará para sempre. Este coração que se recusa a parar. Será por ti ou por mim?
Por mim não é, porque anseio tanto pelo teu silêncio como anseio pelo som da tua voz.
Se soubesses como o som da tua voz me ia fazer bem…
Hoje a enfermeira falou comigo. Todos os dias fala comigo, enquanto cuida deste corpo adormecido. Chamou-me pelo nome e tenho quase a certeza de que lhe sorri, de tão bem que me soube ouvir aquele som tão familiar: ”Maria”.
Mas tu, não!… Limitas-te a olhar-me, porque sinto o teu olhar, triste, acabado e o teu respirar encurtado por um soluço ou outro. Mas não dizes o meu nome, nunca…
Será que te culpas?
Será que tens medo que não te perdoe?
Será que achas que devias estar no meu lugar?
Será…
Não te martirizes. Fala comigo, chama pelo meu nome, como dantes, como sempre, com doçura, com esse travo a chocolate que te adoçava a voz e me adoçava, sempre, o coração… Maria.
Que pena não te ter dito que gostava de ti, todos os dias, ao acordar…
Que pena não ter adivinhado que te ia deixar tão cedo. Tanta coisa deixei por fazer, por dizer, por terminar e, principalmente, por começar.
Que pena!… E agora sei que estou a ser egoísta, de não te poder levar comigo. Tenho pena…
Mas a verdade é que te tenho dentro dos meus olhos. Acreditas?
Nesta minha solidão que me foi imposta e neste silêncio que todos os dias me devora mais um bocadinho, só te tenho a ti.
Estás dentro dos meus olhos.
Estás na minha boca.
Estás na minha pele.
Estás no meu coração.
É só por ti que ele não se apaga. É só por ti que ele bate devagarinho, mas certo.
É só porque não quer parar de bater, sem ouvir novamente o meu nome pronunciado por ti. Maria…
Sonho muito, sabes?
Todos os dias estou em sítios diferentes, mas que sempre quis conhecer. Ainda há pouco cheguei de Veneza, acreditas?
Tantas vezes dissemos que tínhamos de lá ir e, afinal, acabámos por não ir e adiar mais esse meu sonho e tantos outros.
Acho que é por isso que vim de lá, mesmo há bocadinho.
Queria tanto conseguir falar, para te contar como é.
Quando eu partir, não deixes de lá ir e leva-me dentro dos teus olhos, para que eu possa ver o que tu vês. Para que seja menos uma coisa que eu deixei de fazer… Menos uma de tantas que podia ter feito e não fiz. Como me arrependo…
Hoje, apesar dos medicamentos que eu sinto que me dão, porque me enchem de calma, sinto uma dor fininha junto do meu coração. Será porque te vou deixar antes de te ouvir pronunciar o meu nome ou porque finalmente esta máquina que me agarra a este mundo começa a ficar desanimada e se prepara para parar?
Se ao menos parasse no momento em que estivesses presente!…
Se ao menos esta dor fininha parasse no momento em que me agarras a mão e me penteias os cabelos com a ponta dos dedos.
Estás para chegar.
Consigo pressentir-te, tal é este laço que nos une.
Abres a porta com jeitinho, como sempre. Não te vejo, mas adivinho-te os gestos e a tristeza no olhar e a minha dor sacode-me, mais profundamente.
Se eu pudesse abrir os olhos, só mais uma vez. Nem precisava falar, porque tu lias-me no olhar as coisas que não te disse. E como me arrependo de não as ter dito!…
Sentas-te ao meu lado e eu posso sentir o teu perfume de sempre.
Não vês, mas eu estou a chorar.
Não me ouves, mas eu estou a dizer-te o quanto te quero e o quanto me fazes falta.
Como posso eu partir sozinha?
Deitas a cabeça sobre o meu peito e eu sou a mulher mais feliz do mundo.
Choras e eu sorrio.
E tu vês, mas não queres acreditar.
E dizes o meu nome, Maria…
E aquela dor fininha cessa e eu desprendo-me de mim e saio do meu corpo para te abraçar.
E sentes…
Beijo as tuas lágrimas…
E tu sentes…
Voltas a dizer o meu nome, baixinho.
E eu oiço…
Solta daquela muralha onde estive prisioneira tantos dias, sinto uma alegria inexplicável…
E, ao ouvido, digo-te que te espero do outro lado da eternidade.
Quando notas que tenho um sorriso nos lábios, paras de chorar, fechas-me os olhos, que se abriram para que tu fosses a última coisa que eu visse antes de partir e dizes-me ao ouvido:
- Espera por mim.
Já sem lágrimas, deitas novamente a cabeça sobre o meu corpo para sempre adormecido e permaneces em silêncio, num transe profundo que me dói.
Quando te soltas daquele estado de mudez e dor, afagas-me a cara, penteias-me uma última vez os cabelos com a ponta dos dedos e afastas-te, sem saberes que estás cada vez mais perto de mim.

A. Luz

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