Tudo era para ser eterno... Ana Fonseca da Luz
Depois de uma noite em que todos os meus fantasmas me visitaram e em que a angústia se instalou no meu coração de pedra e cal, acordar foi a melhor e a pior coisa que me podia ter acontecido.
É como se a noite me tivesse lançado um feitiço, para me apagar, para riscar a minha vida de cinzento-escuro, de um cinzento profundo e, no entanto, a matizasse de uma nova cor ainda desconhecida.
Luto contra mim e por mim. Uma dor sem tamanho e dilacerante não me deixa viver e puxa-me novamente para a cama, como se este aconchego me trouxesse alguma esperança.
Fecho os olhos com força, tentando, vãmente, apagar o teu rosto, o teu toque, até mesmo a tua existência, que permanece colada à minha.
Entrego-me a este abandono em que me deixaste e recuso-me a existir na tua ausência.
Sinto-me como se me tivessem arrancado as asas, estas asas que tantas vezes te elevaram até aos céus, a ti e a mim. Estas asas onde tantas vezes te aconchegaste, depois de noites em que vinhas de sítios que eu desconhecia e que todos os dias te roubavam mais um bocadinho de mim.
Mesmo assim, eu recebia-te e implorava-te para ficares comigo porque, apesar de tudo, apesar de eu saber que vinhas de outro abraço, de outro beijo, eu te considerava meu, só meu!
E amavas-me nessas noites, como se realmente me amasses, e eu amava-te, como se fosse a primeira vez e como se fosses realmente meu.
Depois, de manhã, quando me levantava, enquanto tu ficavas deitado, provavelmente a sonhar com outro abraço e outro beijo que não era o meu, eu amaldiçoava-te e amava-te ainda mais.
Amaldiçoava-me por te querer tanto e amava-te, porque nada fazia sentido sem ti.
Um dia, em que parecia que éramos felizes, um dia em que me parecia que eras só meu, disse-te que te amava. Porque te amava, porque ainda te amo. Porque amar-te, para mim, é tão importante como respirar.
Riste-te na minha cara. Chamaste-me tolinha, enquanto me passavas a mão pela cabeça, num gesto banal, como quem acaricia uma criança, um gato.
Quando te perguntei o que sentias por mim, porque precisava de saber, porque queria ouvir-te dizer “também te amo”, respondeste a sorrir que não sabias, que apenas sabias que eu era importante para ti.
Recolhi-me na minha tristeza e passei a dizer-te que te amava, apenas enquanto dormias. Para que não te risses de mim, para que não tivesses pena de mim e porque dizer-te “amo-te” me era importante, me era imprescindível.
Procuro-te agora na minha cama. Estendo o braço e não te encontro. Provavelmente recebes agora outro abraço e outro beijo, que não te são dados por mim. Provavelmente dizes agora a alguém o “amo-te” que a mim nunca me disseste.
Aninho-me no quente da minha cama, porque o frio que sinto em mim quase me mata, tal como me mata o teu sorriso, quando és quase meu, tal como me mata o teu desprezo, quando te sinto distante de mim e tão perto do que eu não quero aceitar. O teu desamor!
Percorro a minha casa, sonâmbula, bêbeda de ti. Procuro-te desesperada, sabendo perfeitamente que não estás aqui e, no entanto, estás em todo o lado…
Estás no teu cachimbo que repousa, já sem perfume em cima da mesa, no livro que há tanto tempo começaste a ler e que eu sei que nunca vais terminar e no CD de Jacques Brel que sempre ouves, quando cá estás, e que te ausenta de mim, te transporta para longe e te deixa de olhar distante e inconformado. É como se aquela canção que ouves vezes seguidas, “La chanson des vieux amants”, fosse o teu passaporte para a mulher que realmente amas.
Finalmente consegui dizer, “para a mulher que realmente amas” e que não sou eu…
Quando perdes o teu olhar, quando ouves essa música, como se ela te entrasse pelos poros e te reanimasse, eu fico pequena e submissa, frágil e praticamente invisível para ti.
Já pensei deitar fora o CD, dizer-te que se perdeu. Quem sabe assim, não eras inteiramente meu, pelo menos uma vez. Mas não consigo, porque sei que amas essa pessoa com a mesma intensidade com que te amo a ti. Por isso, quando não estás, quando não vens e ficas naquele abraço e naquele beijo que não é meu, oiço Brel sozinha e o meu coração absorve cada palavra, como se fosses tu que me dissesses ao ouvido, “je t’aime encore, tu sais, je t’aime…”
Ontem, disseste-me que nada nesta vida é eterno, que os sentimentos morrem, tal e qual como morre uma flor.
Disse-te que não percebia a comparação. Pedi-te para explicares melhor.
Explicaste melhor. Antes não o tivesses feito…
Disseste-me que a flor nasce tímida e bela, depois explode em cores e cheiros e que, por fim, morre seca, apesar de lhe continuarmos a dar água todos os dias, de lhe apararmos as folhas e lhe darmos adubo.
Um dia, tudo isso é inútil, disseste-me como se me estivesses a fazer um desenho, para que eu percebesse melhor.
Percebi.
Perguntei-te, adivinhando logo a resposta, se não achavas que havia coisas que deviam ser eternas.
Respondeste, de cabeça baixa, que eterno é apenas o que é sublime e saíste, levando apenas o CD de Brel e deixando-me a mim presa ao chão e de olhar turvo e cansado.
Esta noite, todos os meus fantasmas me visitaram. Até o da coragem…
Todas as tuas coisas estão numa caixa. As tuas roupas, numa pequena mala. E aguardam-te, ao pé da porta. Sei que vais voltar um dia destes, quando precisares nem sei bem do quê.
Vou deixar apenas o teu cachimbo e o teu livro. Enfeitam-me a mesa…
Abandonei finalmente a minha cama macia e quente, porque é preciso acordar. Na minha cabeça e no meu coração, Brel canta ainda:
… vingt ans d’amour c’est l’amour fort… je t ‘aime encore, tu sais, je t’aime…
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