ADIANDO A VIDA... Ana Fonseca da Luz










Hoje, não vou trabalhar. Decretei greve aos meus compromissos e vou só fazer o que me der na real gana.
Tomo um banho demorado e quente e deixo passear a imaginação para lá das paredes da minha casa-de-banho, da minha casa, da minha vida…
Lá fora, a Primavera rebenta em flor. Há novos perfumes no ar. O jasmim é o mais intenso, tão intenso que era capaz de o pôr num frasquinho e usá-lo de perfume, se quisesse. Mas não. Hoje, não quero nada do que quero nos outros dias.
Saio do banho com a cabeça no mundo da Lua, como, aliás, é meu costume e nem reparo no gato, que se deitou à minha frente, à espera que eu lhe faça festas.
Hoje, não tenho gato, não tenho marido e nem sequer tenho filhos.
O gato mia, como que a queixar-se da minha falta para com ele e abro uma excepção… Não tenho marido, não tenho filhos, mas não consigo deixar de ter gato. Volto para trás e acaricio-lhe o pêlo e o pescoço, da maneira que ele tanto gosta. Ronrona feliz.
Quem me dera ser gato e ficar feliz só com uns minutos de atenção e umas festinhas no pescoço…
O meu marido já saiu para trabalhar.
Entro no quarto dos meus filhos. Estão de férias. Ainda dormem, cada um na sua cama. Pode desabar o mundo que nada os acorda. Quem me dera dormir assim… Afinal tenho filhos. Tapo-os, passo-lhes a mão pelo rosto e beijo-os na ponta do nariz. São lindos… tão despreocupados… tão novos… tão meus. É isso, afinal tenho filhos. Não ter marido ainda vá que não vá, mas não ter filhos, nem gato…
Entro finalmente no meu quarto. O marido já fez a cama. Boa! Abro as portas do roupeiro.– Não tenho nada para vestir! – penso, perante um roupeiro repleto. Deito-me na cama e deixo a minha imaginação viajar mais um bocadinho. Onde estou eu? Tão longe e tão perto…
No rádio, o Rui Veloso canta. ”Hoje não me recomendo.”
Nisto, toca o telefone. O meu marido bateu com o carro. Pede-me para passar pelo emprego, antes de ir para o meu. Tenho de deixar uns papéis na seguradora. Pareceu-me preocupado.
Visto-me em poucos minutos e vou em seu socorro…
Afinal tenho gato, tenho filhos e até tenho marido.
Quanto a mim, quanto à minha vida, vou continuar a adiá-la.
Entro no carro, ligo o rádio e o António Variações canta. “É p’r’ amanhã, bem podia ser p’ra hoje”!…

A. Luz com Rafael Gomes, U

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