O tocador de flauta e o caçador de sonhos... Francisco Valverde Arsénio










Quando se quer escrever, reinventam-se palavras, aquelas que mais nos marcam e consideramos nossas. Compramos cadernos, lápis e canetas e sentamo-nos ao sol, à mesa ou no chão do quintal. Inventamos prisões para borboletas para lhes dar seguidamente a liberdade, prendemos o vento e depois abrimos a janela para que se espraie por montes e vales. Quando se quer escrever, inventam-se histórias de crianças que brincam, que revolvem a areia da praia, comem laranjas, devoram gelados e se lambuzam com chocolate. Escrevemos sobre o tempo e sobre a noite, sobre promessas e segredos, sobre o baloiço de corda preso à figueira e o cantar da coruja. Quem escreve inventa, entranha-se na invenção e fá-la verdadeira.

Um dia contaram-me a história duma menina da cidade cujos pais a forçaram a viver no campo. Ali, respirava-se ar mais puro, ouviam-se os pássaros e os aviões riscavam o céu muito alto. Mas a menina estava habituada ao rebuliço da cidade, ao trânsito, às multidões e a ficar sentada na varanda desenhando o mar. Aos poucos foi-se habituando à mansidão dos dias, ao silêncio e ao horizonte longínquo. Começou a desenhar árvores, insectos e flores selvagens. À tardinha, corria pela planície e procurava um monte de onde pudesse avistar o outro lado do mundo, agarrá-lo com os olhos e prendê-lo entre o lápis e o caderno. Um dia viu muito ao longe o que lhe pareceu um rebanho de ovelhas, só que a uma distância tão grande mais pareciam formigas. Ainda pensou ir ao encontro daquele quase imperceptível movimento mas deixou-se ficar sentada no monte com o seu caderno e o lápis. Aos poucos, o rebanho foi-se aproximando e as figuras dos animais tomaram forma. Um pouco mais atrás vinha um jovem pastor com o alforge às costas e de boné na cabeça. Tocava flauta, ladeado por dois possantes cães.
Como a menina não sabia tocar flauta e o jovem pastor não sabia pintar, combinaram encontrar-se todas as tardes ali no monte… e a menina aprendeu a tocar flauta e o jovem pastor a pintar os campos que o viram nascer. Ela esqueceu o cheiro da maresia que lhe chegava todas as tardes enquanto pintava na varanda da cidade. Agora os cheiros eram de rosmaninho, estevas e alecrim. E viu nos olhos do jovem pastor os seus próprios olhos e o destino.

Numa outra história, um homem ia caminhando ao entardecer por uma daquelas estradas que deixam a aldeia para trás. Ao passar junto das últimas casas, um gato atravessou-se-lhe na frente. Era um enorme gato negro que por pouco não o fez cair, tal foi o susto.
– Ah, gato maldito – disse, tentando recompor-se.
– Estás a falar comigo? – questionou o gato já no outro lado da estrada.
– Querias que fosse com quem? Estás a ver mais alguém por aqui? – respondeu o homem. Mas calou-se de repente e, num gesto involuntário, colocando a mão no queixo, com ar interrogativo, atreveu-se a exclamar: – Espera lá, mas tu és um gato!
– E tu és um homem, um homem com medo dum gato! Sou um gato, sim, e depois? Por acaso é proibido sê-lo? – respondeu, aproximando-se do homem ainda não totalmente recomposto do primeiro susto.
– Mas tu falas?! Como é que isso possível? Aprendeste a falar como os humanos? –perguntou o homem.
– Calma aí… tu é que estás a falar a língua dos gatos, tu é que começaste a falar e logo a insultar-me – respondeu o gato.
O homem ficou sem palavras. Estaria a delirar ou era tudo realidade? Olhou para um lado e para o outro, esperando que não houvesse ninguém nas redondezas a observar o acontecido… não queria que o apelidassem de doido… Esta agora, a falar a língua dos gatos!!!
– O que fazes aqui à saída da vila e a esta hora? Ainda não é bem de noite?! – disse o homem ao gato.
– Não faço nada, os gatos não fazem nada, sou vadio, ando por aí – respondeu o gato. – E tu? Para onde vais? E o que fazes?
– Sou caçador de sonhos, ando por aí à procura deles.
– Olha lá, sou gato mas não sou parvo, que história é essa de caçador de sonhos? Ninguém caça sonhos – disse o gato.
O homem olhou novamente em redor e falou ao gato em voz muito baixa:
– Chega aqui, anda ver – e retirou do bolso uma pequena pedra e um caderninho que abriu, continuando: – Vês, é aqui que guardo os sonhos que caço, estás a ver estas palavras? São sonhos, são os meus sonhos.
O gato olhou, incrédulo, sem saber se havia ou não de acreditar perguntou:
– E essa pedra que trazes no bolso, para que serve?
– Ah, esta pedra! Tu reparas em tudo, tens mesmo olhos de gato – disse o homem, já mais à vontade. – Esta pedra é para quando eu tiver tempo de esculpir um poema.
O gato aproximou-se das pernas do homem e fez-lhe sinal de que partissem… Aos poucos, as casas iam ficando para trás e cada vez mais longe.

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