As páginas da história... Francisco Valverde Arsénio











Uma e outra vez ele sobe a rua, é íngreme, mas o passo é firme e decidido. Ela fica sentada no pequeno murete como se fosse uma adolescente deslumbrada e sonha com o seu cavaleiro andante do livro de aventuras, como ouviu na canção. Ele é o seu príncipe encantado que passou da ficção para a realidade e vai escrevendo um novo livro num enredo romanceado até à exaustão. Revê vezes sem conta o tempo aprisionado nas páginas da fantasia, ela sabe que o tempo não se guarda, o tempo passa rápido como um relâmpago. O tempo passa mas ficam as recordações e ela sabe de cor todas as páginas que ainda não escreveu.
Podem roubar-nos os sonhos mas não nos podem roubar as recordações, elas fazem parte do ADN da vivência, têm raízes, são como as árvores milenárias.
Passam os dias, as semanas, os meses e até os anos. Sim, esse tempo vai passando mas ela não quer saber, sonha que um dia o cavaleiro voltará a subir a rua íngreme no seu passo firme e decidido e por fim a convidará a que se percam juntos no ventre da cidade. Um dia, o destino fará deles os personagens duma peça de teatro cujo texto há muito foi escrito.
Ele sobe a rua e no seu pensamento vai desbravando letras, arruma-as em viés, oblíquas ou na perpendicular. As palavras beijam-no com espontaneidade e não tem medo das páginas do caderno. Estas sim, mostram-se tímidas, virgens, nuas. Vai subindo a rua e lavrando as palavras que ficam presas ao ferro do arado, lavra-as em cada página como se navegassem contra a corrente, como se estivessem por dentro do vórtice da tempestade, porque as palavras são como frutos maduros, são sombra nos dias tórridos do verão. As palavras beijam-no mas ninguém entende o porquê, talvez por serem surreais ou inundarem as páginas do caderno e estas não serem mais virgens.
Ela fica ali sentada no pequeno murete, conta o tempo pelo cante dos pássaros, talvez não seja este ainda o tempo realizável, mas sabe que ele é o tal cavaleiro andante, sabe, nas centenas de páginas que já escreveu, que ele abarca todas as suas memórias e não há tempo algum que o apague. Abandona-se no declínio da tarde da mesma maneira que os pescadores regressam do mar, não há gaivotas, aqui são os pequenos pássaros que lhe escoltam os pensamentos, sente as ondas longínquas enquanto a sombra toma conta da rua. Senta-se numa duna inventada cuja areia roubou os raios ao sol e o vento corre pintado de estrelas. Ali, no pequeno murete, espera pela noite profunda, espera pelos dias, pelas semanas, pelos meses, até pelos anos, mas recusa que os seus sonhos se esfrangalhem em cacos dentro de si.
Ele passa subindo a rua íngreme com passo firme e decidido… eles pertencem-se.

© Francisco Valverde Arsénio

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