No trapézio... Ana Fonseca da Luz











Não sei se me fazes bem ou se me fazes mal. Sei apenas que me fazes falta!
É uma falta, assim estranha, que não consigo definir.
É como um vício proibido, recalcado, amaldiçoado…
E desde quando a exaltação da alma e dos sentidos é pecado? Desde quando acordar é vício? Desde quando mergulhar de cabeça na vida, e fazer da vida uma razão de ser, pode ser uma maldição?
Releio a minha vida, mais uma vez, em voz alta e chego mesmo a recorrer a figuras de estilo para a embelezar. Perdi-lhe o sentido. Perdi-lhe a graça. Perdi-lhe até o amor.
Tenho andado sonâmbula. Só agora percebi. Agora que finalmente acordei, reparei que nada em mim faz sentido.
Fechei-me nesta caixa de veludo e seda e aconcheguei-me a uma existência morna e insípida.
Só nunca perdi o brilho do olhar. Sempre me recusei a isso.
Era como se o brilho dos meus olhos fosse o farol longínquo que me guiava até ao ponto onde, um dia, sabia que haveria de repousar.
Estou sozinha. Sinto-me sozinha. Quero-me sozinha, porque assim sou mais eu.
Deixem-me em paz!
Dêem-me espaço para me renovar, para renascer e para voltar a ser tudo o que quero alcançar.
Também não anseio por muito. Anseio apenas ser eu, sem disfarces nem véus.
Voo neste trapézio, porque sei que, se alguma coisa correr mal, me espera uma rede, lá em baixo.
Pois bem, a partir de hoje, recuso-me a voar com rede!
É por isso que me fazes falta, bem e mal.
Amanhã é a coisa mais longínqua que me separa de ti.
Hoje é tudo o que me resta e o que me liga a um tempo perdido, onde o horizonte me parece inatingível e partilhado de saudade e flores.
Nada faz sentido. Nada neste texto faz sentido.
Este é o esboço mais fiel que alguma vez consegui fazer da minha vida.
Se eu escrevesse poemas, se eu escrevesse poemas, jamais conseguiria rimar…
Volto ao princípio e leio uma e outra vez o texto da minha insatisfação. Leio e desconheço todas as palavras, tal como me desconheço a mim.
Há dias em que tenho medo de mim. Hoje, tenho medo de mim!
É como uma loucura que só eu enxergo e que me inunda todos os dias mais um bocadinho, e eu soubesse que, a qualquer momento, tudo ruísse aos meus pés.
Agarro-me nem sei a quê para me salvar, sabendo à partida que estou condenada.
Se eu ao menos soubesse chorar por mim. Mas estou seca!
E mais uma vez, a rede que me separa do chão, do fim, me segura e me embala, me adormece e me entorpece os movimentos sempre estudados e ensaiados mil vezes.
Como posso eu voltar a ser eu? Como posso eu desistir da minha rede, sabendo que a qualquer momento me posso estatelar no chão?
Rodopiam todos os meus sentidos e todas as minhas forças me abandonam no momento da verdade. E como a verdade pode ser cruel, brutal, impossível de alcançar.
É por isso que me fazes falta, me fazes mal e bem, tanto bem!
Lanço-me uma última vez neste trapézio, agora já sem rede. Preparo-me para a queda que me parece agora inevitável e surpreendo-me, porque caio e não me dói.
Algo me agarra no ar, enquanto pairo no vazio. Reparo que é a vida que me agarra e eu que me agarro ao tempo. Lá ao longe, encontro o brilho dos meus olhos que nunca perdi, que me guia e me cega, no momento em tudo parece consumado.
Não fosse o bem e o mal que me fazes, jamais teria coragem para te dizer:
- Fazes-me falta.

A. Luz com Ze Luis Apolonia, Joaquim Pessoa

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