Malditas reticências... Ana Fonseca da Luz






Há coisas malucas que me fazem lembrar de ti…
Hoje estou romântica. Bem, não sei de estou romântica ou se sou romântica…
Quem sabe não será o vinho branco fresco que bebo, porque estou sozinha, que me faz sentir assim? Uma coisa é certa, não estou mal. Estou leve e pensativa, perdida nesta teia a que me prendo e que me suspende e com tanta coisa que deixo por dizer, porque começo a ser como tu, mesmo sem o querer, e a rematar tudo com reticências. Malditas reticências…
“Não gosto de te sentir assim, de cara presa, como se o mundo te devesse alguma coisa quando, afinal, és tu que deves tanto ao mundo”. Dizes-me tu, às vezes, cheio de uma sabedoria que não me agrada.
Olha para ti, a dares-me conselhos, logo tu, que nunca consegues terminar nada do que começas, logo tu, que, quando não sabes o que me dizer, rematas a conversa com reticências. Logo tu, que te sentes sempre pela metade.
Como estás ausente, senti que era a altura certa para me encontrar, porque já não te posso ouvir mais dizer que não sei o que quero, que não sei o que preciso, que não sei quem sou. E tu, sabes?
Talvez saibas melhor do que eu, mas as coisas que tu queres para ti são precisamente o que eu não quero para mim.
E no entanto, como sei que gostas de loiras e que eu tivesse o cabelo bem comprido como as estrelas de cinema, malditas loiras que sempre te deram volta à cabeça, resolvi pôr o meu cabelo mais claro, bem mais claro… Pronto, castanho aloirado. Imagina o que eu não faço por ti…
A verdade é que, depois do cabeleireiro dar por terminado o seu serviço e eu me vi ao espelho, ia morrendo de susto.
Não, aquela não era eu. Aquela era uma imitação de outra mulher qualquer, mas não era eu. Mesmo assim, e muito a custo, regressei a casa e ainda bem que era Inverno, porque pus a gola do casaco para cima, para passar despercebida.
Em casa, sozinha com o Tavares (o cão) e depois de respirar fundo três vezes, lá me olhei ao espelho. O Tavares, que sempre abana o rabo de alegria, quando me segue todos os dias religiosamente até ao quarto, mal me viu de extensões e de cabelo amarelado, deixou de abanar o rabo, ladrou e deixou-me sozinha no quarto.
Mau sinal. Muito mau sinal…
Sempre ouvi dizer que o cão é o melhor amigo do homem. Logo, se é o melhor amigo, não mente. Não me agradou nada aquela reacção do malvado do cão. Nada mesmo.
Mesmo assim, faço mais uma tentativa para gostar de mim naquela figura de loira arrependida, muito arrependida, e ajeito a minha longa e loira cabeleira com a ponta dos dedos. Fico pior!
Mas com que cara vou eu entrar, amanhã de manhã, no laboratório de análises onde trabalho e onde toda a vida me viram morena?!
Passo a noite quase sem dormir e o cão sem me olhar…
De manhã cedo, telefonas-me. Falas, falas e não dizes nada. Sempre as reticências. Sempre as frases deixadas a meio. Começo a estar farta esta situação. Fazes-me sempre lembrar os funerais na Venezuela, em que o morto se vê aflito para chegar ao cemitério, porque no cortejo fúnebre as pessoas dão dois passos para a frente e um para trás. Tenho impressão de que o defunto, se fosse a pé, chegava lá muito mais depressa. Detesto gente indecisa, como tu e, no entanto, sou doida por ti. Sim, porque se o não fosse, jamais deixaria o Michel,(o meu cabeleireiro) fazer-me este belo trabalho.
O que uma mulher não faz por amor! Ou por estupidez, ainda não percebi bem.
Estou praticamente com 40 anos e eu sei que as mulheres, a partir desta idade, têm todas tendência a começar a ficar loiras, porque vão perdendo alguma frescura e acham que loiras dão muito mais nas vistas. E realmente dão, tenho de concordar. Se não, vejamos.
Se uma mulher morena entra num bar e se é gira, é olhada, claro que é, mas se é loira, platinada de preferência, é simplesmente devorada.
O Tavares continua a ignorar-me, ou por outra, olha-me com um olhar de pena e afasta-se de cabeça baixa e sem abanar a cauda. Provavelmente acha que não sou eu e não deixa de ter razão.
No dia seguinte, lá fui para o laboratório. Loira!
Quando entrei, as minhas colegas, falsas como Judas e todas elas loiras de tinta, disseram que eu estava óptima, que estava muito melhor. Que o Fernando, quando me visse, ia ficar de quatro.
Não era bem de quatro que eu o queria, para isso não precisava de ser loira, o que eu precisava era que ele se deixasse de reticências e deixasse de dar um passo para trás, sempre que dava dois para a frente.
A semana correu de feição e o Tavares até já me olhava, de esguelha mas olhava. O rabo é que já não lhe abanava, como antigamente.
Eu continuava a ter alguma dificuldade em me identificar, em frente ao espelho, mas lá por dentro continuava a ser eu. Ou talvez não. Se continuasse realmente a ser eu, jamais pintaria o cabelo, só porque o Fernando gostava de loiras.
À noite, sozinha no meu apartamento, tinha sempre uma pequena guerra comigo mesma. Fiz bem? Fiz mal?
Chegou finalmente o fim-de-semana.
Eu estava uma pilha de nervos. Logo eu, que sempre me tinha tido em tão boa conta com respeito a segurança e forma de estar na vida.
Mas pronto…
Esperei serena que ele chegasse.
O Tavares parecia mais nervoso do que eu.
E ele chegou.
E olhou-me incrédulo.
E perguntou-me?
- Mas o que raio fizeste tu ao teu belo cabelo preto?
E a minha vontade foi matá-lo à dentada.
Então uma mulher faz uma figura destas por amor e é assim que ele me agradece?
Eu, muda!
Ele, com as pilha todas!
Sem reticências.
- Eu quero a minha Sofiazinha morena. Eu quero-te como tu és. Essa não és tu!
Eu, a chorar…
Ele, sem reticências…
- Gosto de loiras para olhar, gosto de ti para namorar.
Eu, apaixonada, ou estúpida, nem sei bem…
O Tavares, a abanar o rabo, finalmente….
E tu, sem reticências a amares-me.
No dia seguinte, lá fui tirar a minha marca de mulher fatal e voltar a ser eu.
Há coisas malucas que se fazem por amor.
A nossa relação está mais forte, mais saudável, provavelmente não terá nada a ver com a tinta do cabelo, tão mais forte que o Fernando me pediu em casamento e agora sou eu que estou cheia de reticências.
Malditas reticências…

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