MANHÃ CINZENTA... Ana Fonseca da Luz










Deleito-me com o que vejo e com o que sinto naquela fracção de segundos. Uma chuva miudinha e certa cai, anunciando um Outono que ainda vem longe e, no entanto, a terra já tem aquele perfume amargo e doce de que tanto gosto.
Olho para mim e vejo-me de luto. O vestido é simples, leve e colorido, mas estou de luto.
Neste momento tenho dúvidas de que haja uma alma dentro me mim. Nem sei mesmo se tenho um coração, mas, se o tenho, está amachucado, a um canto, espremido e sem cor.
Não gosto de perder. Ninguém gosta. Mas realmente, neste momento, reparo que não tenho mais nada a perder. Perdi tudo o que tinha a perder, no mesmo instante em que te perdi a ti.
No dedo anelar, agora tão magro, uma aliança, que nunca foi abençoada por nenhum padre, sobra-me no dedo. É diferente de todas as alianças que já vi. Foi feita por ti, numa manhã como a de hoje, cinzenta e com cheiro a terra, há muitos anos. Há uma eternidade! Não é de oiro, nem sequer de prata. É feita de um metal sem qualquer valor, porque, na altura, era tudo o que tinhas para me dar. E isso, esse gesto desprendido de qualquer valor materialista, foi tudo o que precisei para me sentir casada contigo, até que a morte, essa amiga traiçoeira, nos separasse para sempre.
Um turbilhão de lembranças e sensações adormecidas sacode-me e quase caio. Sinto-me fraca, invísivel e, no entanto, brilho. Mas este brilho não é meu, é teu! É como se o homem, o amigo, o companheiro e o amante, tudo o que tu eras, estivesse aqui ao meu lado, a beijar-me a nuca, como só tu sabias e a dizer-me repetidamente que me amava para sempre. E, no entanto, estou só! Tão só! Resta-me apenas esta manhã amorfa, cinzenta e crua.
Sento-me, porque é isso que o corpo me ordena. A minha cabeça já nada me diz. Estou cheia de lágrimas, cheia de gritos, cheia deste vazio que tu me deixaste, cheia de vontade de… Nem me atrevo a dizer. Vou ficar calada. Limito-me a ouvir a voz doce que me ecoa na cabeça e que eu não sei de onde nem quando surgiu. Resolvi dar-lhe um nome, já que agora é a minha única companhia. Chamei-lhe Meiga.
Meiga é uma palavra tão doce! Tão doce como esta vozinha, que me chama para dormir, que me acorda de manhã, que me diz que são horas de almoçar ou jantar e que me impede de te ir fazer companhia neste preciso momento.
- Não vás, – sussurra-me ao ouvido – não vás ainda!
“Ainda…” Esta palavra de veludo, “ainda”, faz-me pensar que me resta alguma esperança, quando, afinal, esperança é uma palavra da qual eu já desconheço o significado.
Na cadeira onde repousa este corpo que já não me parece ser o meu, vejo-me ao espelho e quase não me reconheço. É como se fosse outra mulher. Se ao menos a voz que me acompanha dia e noite, e me diz “ainda”, ganhasse forma e eu a pudesse ver…
Passo a mão pelo cabelo, num gesto de vaidade que me parece impróprio neste momento de luto e, de alguma forma, reconheço a mulher feliz que um dia fui. Ensaio um sorriso, que me sai frustrado e volto a mergulhar no meu vazio quente e repousante.
Estou inquieta. Brinco com as mãos, num gesto nervoso e incessante e fecho os olhos, tentando apagar esta dor que me dilacera e que eu não sei de onde vem. Volto à minha janela, que é a única coisa que me separa da manhã.
Lá fora, não fosse o vento que sopra e que balança docemente as folhas das árvores, tudo permanece imutável.
Choro, porque, de repente, uma ária de ópera me ecoa na cabeça. A ópera sempre me fez chorar. Aprendi a gostar de ópera contigo, lembras-te?
Lembras-te?
E do meu sorriso, e do meu choro e dos meus silêncios?
E de mim?
Finalmente, ganho coragem. Não sei onde a fui buscar… Deixo a janela, o espelho, a cadeira e encaminho-me novamente para o teu, o nosso quarto. Estás imóvel. Tens os olhos abertos, parados, como quem procura um sítio, ao longe, mas não encontra. As tuas mãos, outrora sadias e carinhosas, repousam inertes, ao longo do teu corpo esguio e quase irreconhecível. A cabeça afunda-se numa almofada branca bordada de azuis… Sento-me ao teu lado, mas não sou eu! Afago-te o rosto ossudo, mas não sou eu! Beijo-te os lábios sem cor, mas não sou eu! Apoio a minha cabeça no teu peito e canto-te uma canção de embalar, a que te cantava a tua mãe, quando eras pequenino. Depois, calo-me, numa tentativa vã de escutar o teu coração. Não bate! Oiço com mais atenção. Não bate! Chamo-te pelo nome, abano-te. Não respondes!
Volto para a minha janela, para o meu espelho, para a minha cadeira. Volto para mim.
A minha voz, a voz que me acompanha não sei desde quando nem porquê, diz-me baixinho:
- Não chores mais. Já partiu…
Desobedeço àquela voz incessante e choro, grito, mordo-me e acordo! Entrelaço as minhas lembranças, as minhas dores, as minhas alegrias com fitas de cores que não existem e abre-se-me uma ferida no peito, que eu sei que nunca há-de sarar.
A manhã continua cinzenta. Eu choro por ti e a natureza começa, neste instante, a chorar por mim.
A voz meiga que me acompanha não sei desde quando nem porquê, despede-se de mim, baixinho, dizendo:
- Vive! Ainda não é a tua hora!

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