No outro lado do balcão... Francisco Valverde Arsénio


Nem sempre podemos viver de sonhos e ilusões, há coisas na nossa vida que são bem reais. Quis ler e reler tudo quanto já me escreveste, mas não encontrei o que te ocupa o tempo. Onde terei falhado na leitura? Será nas entrelinhas ou tens uma capacidade extra de manteres todos os segredos? Leio, ando para trás e para a frente e noto desânimos nas letras tremidas… É que não raras vezes desenhamos arranha-céus que nos parecem exequíveis, mas falhamos na construção – defeito profissional –, o que queremos duradoiro tem de ser tratado com todo o cuidado até à exaustão, temos de ultrapassar muitos obstáculos.

O bar está praticamente vazio, a luz do candeeiro colocado numa das extremidades do balcão reflecte-se no ecrã do portátil – foi a primeira vez que ousei andar com o computador atrás. Um homem pouco mais velho que eu e com a fralda da camisa fora das calças tenta manter-se a todo o custo direito junto do balcão, mas as dificuldades são muitas, agarra no copo de cerveja e treme tanto que quase entorna o líquido amarelado. Está alcoolizado e grita com a rapariga pedindo amendoins. Ajeito-me melhor no pequeno banco e continuo a ler os teus textos. Fiquei assim enclausurado no meu espaço dentro do bar durante uns quinze minutos, mas não me conseguia concentrar em absoluto por causa do barulho que o homem fazia, várias vezes desviei o olhar do ecrã. Baixei a tampa do computador e olhei para a rapariga. Curioso, faz-me lembrar-te, o cabelo, os olhos, o sorriso… «não temos amendoins, senhor Amílcar», disse a rapariga para o senhor que tinha os lábios brancos de espuma da cerveja. Até a voz é como a tua. Quando entrei não olhei bem para ela, mas quase podia jurar que o cabelo era louro e tinha os olhos azuis, agora reparo que é muito parecida contigo. Vejo-te em toda a parte, acompanhas-me como uma sombra.

A rapariga olha para o senhor e depois para mim, sorri e encolhe os ombros, eu olho também para o senhor, sorrio e faço o mesmo gesto. Não sou daqueles que aproveitam todas as ocasiões para se arvorarem em conquistadores, mas confesso que fiquei preso naquele olhar mais tempo do que o necessário. «Outro café», disse eu em voz baixa e fiquei a observá-la enquanto ela manuseava a máquina. Vejo-te ali naquele corpo e faço-a minha musa do momento, guardarei aquela imagem em mim e eternizá-la-ei. Bebi o segundo café e levantei novamente a tampa do computador. Desta vez não era para ler o que tens escrito, mas sim para te escrever.

Algumas pessoas começaram a entrar no bar e eu perdi a atenção que a rapariga me dispensara. Dois rapazes e duas raparigas sentaram-se numa mesa perto de mim. Um deles tira do bolso um livro de mortalhas e um pequeno pacote com tabaco, enrola um cigarro e coloca-o por cima da orelha, os outros levantaram-se e foram jogar dardos. Entrou mais gente no bar e senti-me deslocado, estava sozinho. A rapariga do balcão aparecia agora aos meus olhos com a imagem que me pareceu ver quando entrei, cabelo louro e olhos azuis, afinal não é nada parecida contigo, eu é que te interiorizei enquanto lia o que tens escrito.

Uma das raparigas que jogava errou o alvo, o dardo embateu na parede, fez ricochete e por pouco não me tocou. Sorriu, pediu desculpa em voz tão baixinha que mal ouvi, peguei no computador, dirigi-me ao balcão, paguei os dois cafés, dei as boas- noites à rapariga e saí.

Um comentário:

  1. Um texto com uma leveza,uma doçura que toca a perfeição e muito,muito o coração.
    Um conforto ler um texto tão fluído ...como as águas do mar.
    Rosa Fonseca

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