O teu olhar é um poema... Francisco Valverde Arsénio










Por mais que eu diga que não te escrevo, sei que irei escrever-te porque há uma necessidade superior a mim de falar para o caderno mesmo sabendo que não irás ler. Sigo este caminho absurdo aos olhos dos outros, mas é como se fosse guiado por uma luz, pela luz do teu olhar que ficou retida no meu. Deixo que os dedos sigam este caminho guiados pelo aroma a erva-doce que deixaste pelos lugares que partilhámos. Tenho consciência de que, quando os teus lábios procurarem outros lábios que não os meus, lembrarás aquele instante trocado em que o ar ficou impregnado de sabores de romãs. Não sei se voltarei a dizer-te “amo-te” ou se essa palavra ficou aprisionada nos nossos corações, mas sei que, se um dia a tornar a dizer, será o vento que a ouvirá. Sei também que levarás contigo uma lembrança penosa, mas que a afastarás dos teus sonhos e recusarás ouvir da tua boca que em nós só há passado porque somos presente. Sei que quando ouvires o canto das gaivotas saberás que declamam um poema meu e ficarás a trauteá-lo por entre as palavras que irás escrever. Por mais que eu diga que não, irei sempre escrever-te, porque, quem sabe, um dia ao acordares lerás as palavras que se fizeram em silêncio.
Hoje, gostava de ser gato e não sei porque assim penso, talvez por achar os gatos felizes. Se fosse gato aproveitaria este sol primaveril e deitava-me no telhado… será que os gatos sonham? Devem sonhar, é que às vezes ouço-os a fazer uns barulhos estranhos. Sim, devem sonhar e ser felizes nos sonhos. Gostava de ser gato para poder dormir enrolado em cima dos telhados e sonhar com uma gata, mas não uma gata qualquer, eu daria ordens aos sonhos para me arranjarem uma especial.
Enquanto escrevo, tu dormes. Tenho o condão de te ver mesmo à distância de anos-luz, posso levitar sobre a tua cama e ver-te dormir, velar pelo teu sono. Dormes com um sorriso nos lábios e de vez em quando abres os olhos na escuridão da noite. Enquanto te olho, preparo as palavras que provavelmente não escreverei porque o tempo não mo permite, porque há tempo que nos foi roubado. Estás serena, quieta, e eu aqui a escrever uma carta como se pintasse um poema. Nunca os meus dedos se cansaram de escrever sobre as folhas do caderno porque elas me atraem, são como um poder divino. Tu sabes que escrevo mesmo quando dormes e que o teu olhar é o meu melhor poema, mas de quando em quando não me olhas e eu perco todas as rimas, todas as imagens. Lembro-me da primeira vez que te olhei, foi dessa vez que te roubei o olhar e nunca mais o restituí. Jamais o terás de volta porque é nele que mergulho todas as madrugadas e transformo cartas em poemas. Sim, o teu olhar é um poema.

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