O búzio e o mexilhão... Francisco Valverde Arsénio










Este silêncio começa a preocupar-me. Logo hoje que está um lindo dia de Março, neste ano em que a primavera roubou quase todos os dias ao inverno. Tanto silêncio… não é normal este vazio na praia, como normal também não é eu vir aqui tantas vezes. Não se vêem gaivotas nem barcos, e o mais estranho é que me sinto sozinho nesta imensidão de espaço. Areia, mar, céu e eu… até a água ao iniciar a maré vazia se cala, as ondas são tão diminutas que quase não dou por elas. Algo de diferente se passa. Tudo tão calado… para onde terão ido as gaivotas? E os barcos? E as ondas? Normal seria todo esse coro cantar em uníssono como sempre faz! Raios… que se passa aqui, alguém ou alguma coisa engoliu o tempo?
Olho para a pequena rocha que só aparece na maré baixa e penso: «alguém tem de me explicar o que se passa, e ninguém melhor que o mexilhão –, rei e senhor da rocha – , para me pôr a par do sucedido». Caminhei devagarinho pois sei como ele é, mal alguém se aproxima fecha-se na sua concha. Assim fiz, e pé ante pé fui-me aproximando. Mal sentiu a minha sombra que se projectava sobre a rocha, num gesto brusco fechou-se. Mas alguma coisa no seu subconsciente o informou de que era eu e espreitou por entre as duas partes da concha:
– Ah! és tu búzio – disse-me baixinho.
Confesso que até a voz dele me pareceu estranha … nem me olhou a direito.
– Sim, sou eu, o que se passa aqui? O que há com vocês? E as gaivotas, por onde andam? Porque é que as ondas não sorriem hoje?
Enquanto eu falava, o mexilhão olhava para todos os lados, desconfiado. Depois pediu-me que me aproximasse um pouco mais, não podia falar alto.
– Não sabes o que se passa? Pela tua cara não sabes mesmo – disse.
– Mas não sei o quê? Alguém levou as gaivotas ou as proibiu de gritar entre voos? Alguém proibiu as ondas de se espraiarem? – perguntei, começando a ficar intrigado.
– Não é nada disso! Mas talvez não sejas de todo alheio à questão. Conheço-te bem, já uma vez te tinha avisado para teres cuidado com quem te metes, mas és sempre o mesmo incauto... l Lembras-te daquela outra que nem sequer chegaste nunca a ver e na alhada em que te ias metendo? – disse o mexilhão, olhando-me com carinho.
Cada vez mais intrigado, sentei-me junto da pequena rocha e aproximei-me o máximo possível.
– Vá, diz lá o que se passa, não tarda a maré começa a subir e fico aqui a roer-me todo sem saber porquê.
O mexilhão olhou fixamente para os meus olhos e falou em voz quase imperceptível:
– Recordas-te daquele ouriço que casou com a estrela-do-mar?
– Sim, mas… espera lá, estás a falar da “tal” estrela-do-mar?
– Sim, dessa mesma. Sabes que ela te beijou porque queria saber por esse beijo se estava realmente apaixonada por ti?
– Espera lá, ó mexilhão, mas quem disse que ela me beijou? Então e eu não dava por nada?, aliás, eu nem nunca estive com a estrela-do-mar a sós.!!!
– Olha, eu até sou capaz de acreditar em ti, é um perfeito absurdo, mas… não é que ela foi contar ao ouriço essa estória mirabolante, com todos os pormenores?… tudo, como se tudo tivesse acontecido?!. O ouriço sabe, vê bem, enquanto tu, que nem fizeste parte do enredo, não sabes de nada do que se diz. Eu sei como tu és, mas os outros não são como tu, acreditam nas estórias mais loucas que a invenção pode engendrar… O que não podes mesmo, meu amigo, é acreditar e confiar nos olhos duma estrela-do-mar!
– Não posso crer – ainda balbuciei…
- Tu sabes que os ouriços são cobardes, inseguros, eu até tenho nojo deles, mas podem ser perigosos… quanto mais inseguros mais perigosos se tornam.
- Tu desculpa, mas eu não acredito que a estrela-do-mar tenha mentido! Há muita coisa nessa história que não está bem contada.
- Eu sei, eu confio em ti. Quantas vezes te avisei para não seres assim? Não sabes que a bondade por vezes traz dissabores amargos? Se fosse a ti, afastava-me de vez da estrela-do-mar, deixava de vir à praia, desaparecia por uns tempos, tu sabes… eu compreenderei a tua ausência e transmitirei a todos o porquê.
- Estou muito magoado, mexilhão. Sinto-me traído, usado, vilipendiado.
- Sei, meu amigo, mas os cobardes tendem a parecer fortes e este não hesitou em contratar meia dúzia de capangas. Conheces aquele gangue de caranguejos parasitas? Pois bem, ele está a pensar contratá-los para te fazerem frente, para te darem uma lição.
- Lição? Quem? O ouriço cobardolas? Ó mexilhão, tu conheces-me, achas que tenho medo de gente dessa?
- Não é medo, tu és doutro valor, não tens nada a ver com aquela gentinha.
- Tens razão, mas não imaginas a dor que tenho no peito, nunca pensei que a estrela-do-mar me usasse como se fosse uma pequena concha de brincar. Não! Não é medo do ouriço, esse, eu até o comia cru sem lhe tirar os picos, é mesmo a dor que sinto e não sei descrever porque a sinto.
O mexilhão olhou-me e perguntou se estava alguém nos arredores.
- Não, não está ninguém, não há gaivotas e ainda não me explicaste porque elas não andam por aqui.
- Vês mais algum ser vivo por aqui? Não vês, pois não? Estamos todos solidários contigo, aqui ninguém quer ouvir falar na estrela-do-mar e no seu ouriço, aqui ninguém lhes dá os bons-dias, ignoramo-los e tu deves fazer o mesmo.
- Sabes – disse eu -, estou a pensar no cobardolas do ouriço, não é capaz de tomar conta da estrela-do-mar e depois contrata os caranguejos parasitas para me darem uma lição! Eu vou ficar por aqui, vou ficar à espera, mexilhão, quero ver como esta história acaba, vou ficar a aguardar novas dos caranguejos.
A maré começou a subir e o mexilhão refugiou-se dentro da casca. Eu… deambulei pensativo pela areia molhada. Mas porquê tudo isto, se não fiz nada?, repetia incessantemente para mim próprio.
«Eu não merecia isto, estrela-do-mar!»

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