Por outro olhar... Ana Fonseca



Por outro olhar

Num acto voluntário de alegria e dor, escolheu cerrar os olhos, escolheu a cegueira de quem tudo vê e respirar pelos poros dos dedos. Num momento de pura entrega, afastou-se de si e visitou um Ser amigo.
Com ternura e cuidado murmurou-lhe baixinho “Deixas-me entrar?” ao que um sorriso desprendido e ausente respondeu sorrindo.

Acomodou-se lentamente, afeiçoou-se àquele estar, recostou-se docemente, deixou-se estar.
Aos poucos viu caírem resistências, apegos, medos, subjectividades latentes de quem não sabe o que esperar. Acreditou e esperou que o seu ser se fundisse naquele que tão prontamente o aconchegou, lhe franqueou a entrada, lhe abriu as portas de par em par e por fim, permitiu-se ver por aqueles olhos que a si se ofereciam sem mágoa ou cuidado, sem dor ou cansaço, sem receio ou temeridade, até com inocência.

O que viu muito a surpreendeu…
Viu o mesmo céu que nos deleita ou nos aflige numa infinidade de movimentos sem par, o mesmo sol que nos ilumina e nos preenche sem que tenhamos de o chamar, o mesmo brilho do luar que nos encadeia mesmo quando encerrados entre grossas e negras ameias, mesmo quando sufocados por acutilantes teias, mesmo quando agrilhoados à noite escura, soluçamos e esquecemos que a luz existe e está ao alcance de um simples e intencional pestanejar…
Viu o mesmo mar, aquele que abraça a cauda dos comentas num infindável movimento sem par, aquele que submerge dores, que ergue esperanças na espuma que brilha sem cessar…
Viu as mesmas estrelas e soube que todos podiam sonhar, viu as mesmas planícies verdejantes de vida e dádiva, viu as mesmas montanhas íngremes e escarpadas a tocar o céu seu eterno e cúmplice namorado, viu outro ser humano e percebeu que todos veem o que vê, que todos procuram a Paz, a tranquilidade, o bem-querer, apesar de muitos estarem presos do véu do esquecimento, debaterem-se exangues em pântanos cimentados de desesperança que urge transmutar em translúcidos gestos de confiança.

Agora, imensamente comovida deixou-se ser lágrima e escorrer por aquele rosto que lhe deu entrada. Agora, regressa a si mais segura do Ser que todos somos e tranquila aguarda outra viagem onde, por certo, irá ao encontro de todas as sensações, de todos os sentimentos, de todas as emoções…

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