Diálogo de uma voz... Francisco Valverde Arsénio


Por vezes distraio os olhos no perambular da minha existência, talvez a própria vida esteja nessa existência, nesse ladrilhado de começos e princípios. Por vezes esqueço o simples gesto de fechar os olhos e é aí que tu aconteces e me tomas, é aí que as pupilas ganham sombras e rasuras, ficam baças e procuro-te às cegas; é aí que os meus movimentos se agrilhoam e se fecham como uma cortina movediça. Aconteces, sim, és um jardim suspenso na minha plenitude onde as heras abraçam a cal das paredes em que mergulho os dias. Os teus lábios têm voz mas chamam-me calados como se as palavras não coubessem na tua boca, como se o poema que escrevi não tivesse versos.

Distraio-me para não pensar em ti, para te esquecer, e voo pelo céu como se fosse um avião. Perco-me de ti entre nebulosas, entre os raios translúcidos das estrelas, entre o quarto minguante da lua. Distraio-me e olho para trás como se a vida ficasse suspensa na ausência do teu brilho, como se me não lembrasse do número da porta onde moro. Parto assim embalado por equívocos, por caminhos que desconheço e não defini como meta, como se tivesse asas desprovidas de penas, e procuro-te como se tivesse perdido o mapa onde te desenhei. Olho para trás, vejo uma linha fina que se confunde com o horizonte e receio que esqueças a minha voz. Neste jogo em que a ilusão se confunde com a realidade, faço-te minha e repito até à exaustão que te amo… ou será que nunca o tinha dito? Talvez tenha sonhado, apenas sonhado longe dos fantasmas e das dúvidas, longe das promessas; talvez imaginasse que era tão-só um porto seguro para ti. Mas que importa se as palavras que desenho são eternidades e incertezas? Fiz-te verbo quando eras substantivo, fiz-te menina quando me amavas como mulher; fiz-te bandeira bordada que não podia desfraldar na minha casa. Apetece-me tocar-te e ser o espelho da tua alma, ser a extensão aprimorada duma outra dimensão.

Se fecho os olhos não te encontro e se os mantenho abertos julgo-te aqui, sem mais nada, os teus dedos presos nos meus dedos e o suor dos nossos rostos misturados. Com os olhos abertos os fantasmas são mais ténues e o chamamento dos sentidos é mais forte. Assim, ignoro o cheiro do feitiço que nos cerca e deixamo-nos perder no terreno bravio. Juntos, desatamos o nó das dúvidas num imperativo de vontades, somos nós dos pés à cabeça passando por cada milímetro dos nossos corpos. Os nossos olhos refrescam-se na fonte e na sombra que esboçámos na penumbra.

Ao longe, ouve-se o chamamento da sereia e nas minhas mãos tenho as tuas ainda suadas. Ouvindo-te na distância, deixei de ser pedaço de coisa nenhuma e declamo o imensurável amor que transporto em mim. Ouvindo-te, espraio-me no leito e atravesso o vazio da minha existência. Ouvindo-te, vagueio na abstracção geodésica da luz.

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