REQUIEM PARA UM SORRISO... Ana Fonseca da Luz









Dezasseis de Outubro.
Hoje, o Gaspar esqueceu-se de acordar.
Enquanto dormia, veio um anjo sorridente e que assobiava uma melodia que ele tão bem conhecia e levou-o com ele.
Foi de livre vontade. Sempre tinha pedido a Deus que o levasse durante o sono. Assim não haveria tempo para despedidas, para lágrimas ou lamentos.
O Gaspar não gostava de lágrimas. O Gaspar era um sorriso!
Quando cheguei à Chamusca, de manhã cedo, depois de receber a notícia, só aí, mesmo à entrada da vila que ele tanto amava, é que o consegui chorar.
A Chamusca estava diferente.
Estava triste, quase amarga…
No entanto, o sol apareceu para se despedir dele. Porque havia dias, nos dias em que ele estava transbordante de alegria, em que até o sol tinha inveja da maneira como o Gaspar brilhava.
Lembro-me dele, boné aos quadradinhos, calça de ganga desbotada, cigarro ao canto da boca e sempre a sorrir, enquanto assobiava. É esta a imagem mais fiel que tenho do meu pai.
O meu pai era um sorriso!
Depois, logo de seguida, enche-se-me o coração de uma tristeza tão profunda que quase me sufoca. Quem me dera não ter de o lembrar no banco do jardim, do lar onde acabou os seus dias, com as costas curvas, cabeça apoiada na sua bonita bengala com cabo de prata e o olhar no chão. Tão sozinho. Tão infeliz…
Em que pensaria o meu pai nesses momentos?
Que dor era aquela que ele continuava a esconder por detrás do sorriso que lhe floria no rosto mal me via?
Que sorriso era aquele que ele me dava, como se fosse sempre o último?
Poucas serão as pessoas que não têm boas lembranças do meu pai.
Os amigos dos copos e das mesas da sueca.
Os companheiros de “calhandrice” junto às bombas do Tó.
Os aficionados dos toiros de morte, que, tantas vezes o acompanharam por toda a Espanha e que ainda hoje não sei bem se iam pelos toiros ou pelos dias tão bem passados na sua companhia.
Os grupos de forcados da Chamusca.
Os vizinhos que sabiam que ele estava a chegar, porque ouviam o seu assobio repetido… e repetido, até cansar.
E acho que até o Senhor da Misericórdia lhe sente a falta (que Ele me perdoe se blasfemo) na Sexta-feira Santa, por já não ver o altar que ele Lhe erguia todos os anos com tanto primor.
Depois, há todas aquelas pessoas que passavam pela sua casa uma só vez e que não o esqueciam nunca mais quando eram recebidas com esbanjada simpatia por entre todas as suas colecções, sempre ao som da tão saudosa Amália, ou de um Passo Doble, se fosse dia de Toirada na Praça de Toiros da Chamusca.
O meu pai era assim. O meu pai era um sorriso e a Chamusca que ele adorava com paixão, perdeu um grande amigo, que se esqueceu de acordar numa bonita manhã de Outono.
Todas as mágoas que lhe tinha por coisas que agora vejo que eram pequenas, enterrei-as, no dia em que o seu corpo desceu à terra e a sua alma subiu ao céu para alegria de Deus e dos anjos, porque não tenho dúvidas de que o céu se enfeitou de sorrisos, quando ele lá chegou e perguntou ao anjo que o recebeu, se ali se podia assobiar e ser feliz.
Ao meu pai, que perdi naquela manhã, entrego agora com um beijo todos os sorrisos que na devida altura não lhe retribuí.

Um beijo para si, pai, e obrigada por este sorriso que me deixou e que às vezes é tão parecido com o seu.

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