Sublime... Ana Fonseca da Luz


Nunca a solidão me soube tão bem e, ao mesmo tempo, me foi tão pesada.
Quando saíste da minha casa, da minha vida, com os teus despojos numa pequena mala, jurei a mim mesma que jamais submeteria o meu coração a outra intempérie de sentimentos tão violenta.
Sentia-me vazia, despojada de emoções e incapaz de voltar a amar tão intensamente como te amei a ti.
Vagueei pela vida como um mendigo, até ao dia em que percebi que a falta de amor que sentia por mim não me levava a nenhum lado e que ainda havia muita vida para viver.
Nesse dia, finalmente, compreendi que nada nesta vida acontece por acaso e que tinha de tirar uma lição de tudo o que tinha passado, para poder seguir em frente, para que a minha vida fizesse a diferença.
Rastejei por mim, pelos meus mais profundos sentimentos e reconheci que não me merecias. Que eu era muito mais do que tu. Que eu era, não, que eu sou, porque, apesar de ainda continuar de asas derrubadas e enfraquecidas, tu não merecias nada do que eu, um dia, tinha sentido por ti.
Depois, senti-me pequena, ao perceber que todos os dias te tinha amado inutilmente, que tu tinhas sido a minha cruz, mas que, finalmente, os pregos dessa mesma cruz começavam a estar lassos e que, mais dia, menos dia, me ia livrar desse sentimento que, para mim, sempre tinha sido sublime e que, para ti, era apenas qualquer coisa que não conseguias explicar.
Mas, desde quando “amar” é explicável?
Ainda hoje, ao fim de tanto tempo, não consigo perceber por que é que não leste as minhas cartas! E foram tantas…
Não sei se não as leste, porque não querias mais saber de mim, ou porque só agora é que te chegaram às mãos. Todos os dias, nos dias mais amargos da minha saudade de ti, te escrevia uma e todos os dias a abandonava sobre a mesa, junto ao teu livro e ao teu cachimbo, para ler no dia seguinte com mais calma, mais friamente e tentar corrigir os meus sentimentos, como se eles se pudessem alterar durante a noite, como se fosse possível a noite apagar-te da minha vida. Como se isso fosse possível! Depois, depois de as ler no dia seguinte e sem lhes tirar nenhuma palavra, nenhuma vírgula, guardava-as numa caixa de papelão e jurava a mim mesma que, no dia seguinte, a poria no correio.
E assim, amontoei as minhas palavras e os meus mais profundos sentimentos. Nunca mandei nenhuma. Foi por isso que não as leste, na altura… Porque não as recebeste…
Depois, um dia, precisamente no dia em que a minha alma começava a apresentar algumas melhoras, encontrei-te, por acaso.
Descias a rua, de cabeça baixa, de mãos nos bolsos, porque fazia frio, e um olhar apagado, que me soube bem ver. Parecias-me infeliz e sozinho e isso deixou-me imensamente feliz. Eu sei, eu sei que esta minha felicidade não abona muito a meu favor. Mas foi assim que me senti. Agradou-me pensar que talvez estivesses a provar um pouco do teu próprio veneno e isso, de alguma forma, fortaleceu-me. Quando levantaste o olhar e me viste, os teus olhos voltaram a cair no chão e fingiste procurar alguma coisa no bolso. Como eu te conheço bem! Mas, a verdade é que não tinhas escapatória.
Ensaiaste então um sorriso, que eu não te conhecia e que me parecia falso, e deste-me um abraço leve e mentiroso.
Retribuí da mesma forma e senti-me mil vezes melhor, porque não precisei de ir buscar o meu coração aos pés, como sempre imaginei que me aconteceria, no dia em que te reencontrasse.
Trocámos algumas trivialidades. Eu fingi que nunca te tinha amado. Tu fingiste que já me tinhas esquecido.
Quando te perguntei “Como estás?”, respondeste-me “Muito bem” e eu li nos teus olhos que era mentira. Mais uma vez, aquela sensação de felicidade por te adivinhar infeliz invadiu-me e desenhou-me um sorriso cruel nos lábios.
Disseste-me timidamente “Deixei o meu livro e o meu cachimbo na tua casa. Posso passar logo à noite para os ir buscar?”
Apeteceu-me dizer-te que sim, mas respondi que não ia estar. “Passa amanhã, se quiseres, depois das seis”, e sorri-lhe triunfante, enquanto ele me piscava o olho num jeito que eu muito bem lhe conhecia, quando alguma coisa lhe agradava.
Aí, com esse piscar de olho, algo retrocedeu. Ainda não estava curada! Estava melhor, mas não estava curada e não era altura para ter uma recaída. “Nunca mais” eram as minhas palavras de ordem.
Depois, afastei-me, adivinhando o teu olhar colado nas minhas costas e o teu coração num turbilhão que o meu coração começava também a sentir.
As minhas lembranças deviam ser iguais às tuas.
Seria que o que sentias por mim, naquele exacto momento, era sublime?
Subi a rua que tu descias, num desencontro impossível de compreender.

Estou em casa à tua espera.
Depois de muito reflectir, achei por bem que era chegada a hora de leres todas as cartas que te escrevi. Não são muitas, apenas 32…
Sento-me no sofá e brinco com as cartas. Sei que, se as voltar a ler, não te entregarei nenhuma.
E afinal, para que raio hás-de tu ler as minhas angústias?
Num gesto rápido e algo teatral, lanço na lareira todas as cartas, menos a primeira e a última. Ao fim e ao cabo, só essas interessam. As outras são apenas o meu eu fragmentado e o meu novo eu que se recompõe e renasce… Sublime é o que te escrevo na primeira, em que não passo de uma lágrima ou de um grito e na última, em que te arranco da minha cruz e aprendo, se não a viver, pelo menos a sobreviver.
Chegas pontualmente às seis, de olhar brilhante, tímido e inquieto. Recebo-te, de olhar castanho profundo, sereno e renascido.
Convido-te a sentar, mas já te sentaste.
Mostro-te as cartas, mas já as tens na mão.
Sento-me finalmente à tua frente e não ao teu lado, enquanto os teus olhos ávidos juntam as letras, as palavras e levantas, de quando em vez, os olhos e olhas-me de olhar, ora triste, ora molhado.
Continuo à tua frente, muda e tu a falares tantas coisas que nunca me falaste com o olhar.
Por fim, por fim parece-me que estou dentro de uma tela de cinema, porque te lanças aos meus pés e me dizes tudo aquilo que eu sempre quis ouvir.
O castanho dos meus olhos mistura-se com o verde dos teus e dessa fusão de cores um sentimento renasce em mim. E em ti?
Fazes-me juras, promessas e eu retribuo, sem convicção, mas, de qualquer maneira, feliz. Pedes-me que te deixe ficar.
Não deixo.
Há tanta coisa em jogo. Tantas mágoas, tantas lembranças más que não se apagam com um beijo.
Desço à terra, enquanto voas.
Aninho-me nos teus braços, num abraço sincero, mas digo-te, impiedosa, que não volto a passar pelo mesmo, que não te quero a tempo inteiro na minha vida, que te quero apenas quando te quiser e que é assim ou de maneira nenhuma. Amarras, nunca mais!
Abraças-me forte e dizes-me que está bem, mas não é isso que os teus olhos dizem. O teu olhar verde quer ficar, mas eu não deixo.
Quando sais, deixo-me cair sem forças no sofá, onde me disseste tudo o que eu mais queria ouvir e sorrio triunfante.
O “amo-te” que tanta vez te disse no passado e que sempre achaste imbecil, não o vais voltar a ouvir. Em compensação, enquanto fechavas a porta, dizias-me baixinho. “amo-te”.
Sublime, meu amigo, (meu amor?) é descobrirmos que nunca é tarde para percebermos que nunca é tarde…

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