A Viagem... Ana Fonseca da Luz




- Queres vir comigo?
- Mesmo sem saber onde vais, digo-te já que sim.
- Mas eu vou-te dizer onde vamos. Vamos até onde a nossa imaginação nos levar.
- Quero acordar com o barulho da chuva e com o arco-íris a cortar o céu…
- Agrada-te o cenário?
- Agrada, mas conta mais, gosto tanto de te acompanhar nestes teus passeios. Às vezes, assustas-me. Levas-me até muito longe e muito alto e, no entanto, não consigo resistir à adrenalina com que me presenteias, nos dias em que estás assim, cheia de liberdade, cheia de ti. Hoje pressinto que estás num desses dias em que tudo é possível. Estarei enganado?
Baixas os olhos e não respondes, como se tivesses vergonha de hoje seres tu, realmente tu, com essa alma solta e desprendida das coisas materiais, das coisas banais que sempre te rodeiam e que tantas vezes te incomodam, precisamente por serem isso, banais!

Tocas-me com esse olhar de manteiga que sempre te conheci e de que sempre gostei e respondes-me finalmente:
- Hoje vou levar-te para além de tudo o que conheces. Quero eternizar os abraços, as alegrias e até mesmo as doces tristezas que sempre nos acompanham. Quero-te despreocupado e leve, tão leve como o vento que sopra e que tu mal sentes.
Quando sonho contigo, quer tenha os olhos fechados pelo sono ou abertos pelo simples prazer de te recordar, é assim que te vejo, livre e despreocupado.
Ri-me com sinceridade, demos a mão e continuámos o nosso passeio à beira-mar, sempre a viajar sem nunca sair dali, como se seguíssemos pegadas que outros já tinham pisado, com se aquele fosse um caminho sem regresso. E foi.
Esta foi a nossa última conversa.
Este foi o nosso último passeio.
Esta foi a nossa última vigem, até ao mais fundo das nossas almas.

Só hoje, passado um ano da tua morte, consegui voltar aqui.
Sento-me na rocha em que nos sentámos nessa tarde e revivo cada palavra tua e apercebo-me agora do que me querias dizer e eu são soube compreender, dos sinais que me deste da tua fragilidade e que eu encarei como mais uma maluquice tua. Da forma como me apertavas a mão, enquanto conversávamos e me dizias que aquela seria a nossa última viagem e eu ri e te disse:
- Só se um de nós morrer entretanto é que vamos deixar de viajar sem sair do lugar…
Então, olhaste-me nos olhos e disseste-me, a rir, alto:
- Mas não, nunca vamos morrer, sabes bem isso. Sabes o que combinámos há muitos anos: um não morre se o outro não morrer também,
Mas tu morreste.
E eu estou aqui, mas realmente ainda não percebi se estou realmente vivo. Ou antes, a tua presença é tão constante na minha vida, que eu acho que tinhas razão, se um não morreu, o outro também não…
Hoje farias 22 anos.
Hoje fazes 22 anos, porque me recuso a deixar-te partir… Hoje faço 22 anos…
Durante este ano de luto e de desespero pela minha imbecilidade, por não te ter compreendido, quando me dizias que te sentias perdida e sozinha, me martirizei, me castiguei e, no entanto, às vezes, nos meus piores momentos de tristeza, parece-me ouvir-te rir no meu ouvido como se troçasses de mim.
- Isso não se faz, digo-te baixinho, para que me possas ouvir.
Era o que a nossa mãe dizia, quando nos levava à igreja:
- Falem baixinho, para que o Jesus vos oiça…
Por que é que não me disseste baixinho, naquela tarde, para que eu te ouvisse, que o teu caminho te estava a ser insuportável? Por que é que sempre foste tão sensível? Por que é que o mundo, para ti, sempre te pareceu pequeno? Por que é que não me disseste, baixinho, bem baixinho, que o peso era demais para ti?
Sempre soubeste que podias contar comigo… mesmo quando estavas dias fechada no teu quarto, porque não conseguias ver ninguém, quando choravas todo o dia perante o desespero do pai e a angustia da mãe, eu estava lá. Sempre!
E eu punha-te aqueles papeis por debaixo da porta, onde escrevia apenas “estou aqui”, porque, nesses dias, nem a mim me querias ver, e tu me devolvias de igual maneira e onde tinhas escrito “Eu sei que estás aí”.
Não te vou perdoar!
Não me vou perdoar!
Não consigo!
Sentado na rocha onde nos sentámos, faz hoje um ano, para a nossa última viagem, recordo a nossa infância, a nossa adolescência e apercebo-me do quanto sempre foste especial, diferente, sonhadora e infeliz, apesar dos teus sorrisos.
Choro, finalmente e oiço, baixinho, dizeres-me ao ouvido
- Queres vir comigo?

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