Frágil... Ana Fonseca da Luz




Sem pensar, abri a porta do guarda-fatos e, durante minutos, percorri todas as minhas roupas com os olhos e com os dedos, mas não encontrei nada que me apetecesse vestir. Se calhar, ia optar por ficar em casa, de pijama e robe de chambre. O pijama era bonito e confortável. Para quê embonecar-me se, ultimamente, tenho andado tão mal de amores?
Dos homens que conheço, os mais interessantes são casados. Automaticamente, são mulheres. Os solteiros são desprovidos de cérebro. Só falam de futebol e das noitadas que passam com mulheres tão pouco interessantes como eles. Depois, há os “fora-de-série”. Altos, inteligentes, com cabelos macios e bem cuidados. Só calçam “mocassins” clássicos ou sapatos de vela. Esses sim, enchem-me as medidas. Mas são difíceis de conquistar, porque há mais procura do que oferta.
Mesmo assim, pensei que era melhor vestir-me e ir jantar a casa da minha amiga Alice. Afinal de contas, há tanto tempo que ela me andava a convidar, que até parecia mal dar-lhe tampa à última da hora. Tinha a certeza de que ela havia de ter lá alguém para me apresentar. Era sempre o mesmo. Já não conseguia perceber se as minhas amigas me queriam voltar a casar para eu ser feliz, ou para elas ficarem felizes.
Acabei por escolher um vestido discreto, mas que não deixava de dar nas vistas. Pus sapatos e carteira a condizer e uns salpicos do perfume que tinha comprado na véspera.
Resolvi ir a pé. Afinal, não andava sempre a dizer a toda a gente que tinha de fazer exercício? Percorri alguns metros, mas logo me arrependi da decisão que tinha tomado. É que, se o jantar terminasse tarde, teria de pedir a alguém que me acompanhasse a casa. Paciência! Agora já não ia voltar para trás. Além disso, com tão grande indecisão com o que vestir, já estava ligeiramente atrasada.
A casa da Alice era linda! Grande, confortável e com uma lareira que me fazia morrer de inveja, sempre que olhava para ela. Na minha, em casa, mal me cabem os pés e eu não gosto propriamente de estar à lareira, mas dentro da lareira.
A Alice veio abrir a porta, com um sorriso rasgado e segredou-me ao ouvido:
- Hoje, vais conhecer o homem da tua vida.
- Mais um canastrão, com certeza!
Enganei-me. O Salvador, era esse o nome do Adónis, de canastrão é que não tinha nada. Preenchia todos os requisitos desejados por qualquer mulher de bom gosto. Alto, moreno, bem vestido, bem calçado e não muito bonito, porque homens demasiado bonitos requerem muita mão de obra.
O jantar correu animado, como era hábito lá em casa e eu esforcei-me por encontrar algum defeito no Adónis. Mas nada. Era perfeito. Além de todas as qualidades que enumerei atrás, era bem educado e bem falante. Não podia ser. Alguma coisa de mal ele deveria ter. Coisas daquelas já não eram habituais nos tempos que corriam.
- Eu não te disse que ele era especial? É um espanto, não é?
- É interessante, mas também não exageres.
- Interessante?! Hás-de dizer-me onde é o teu caixote do lixo!…
O jantar acabou tarde e, como era de esperar, o bom do Salvador ofereceu-se para me ir pôr a casa. É claro que não me fiz rogada e aceitei a boleia.
Quando me estava a despedir da Alice, aproveitei para saber mais alguma coisa da vida dele.
- Mas diz-me: de onde saiu este homem?
- Bem, – respondeu a Alice, atropelando as palavras, para ver se me conseguia pôr ao corrente dos factos, o mais depressa possível – é o novo colega do Pedro Manuel, está no gabinete há pouco tempo, só sei que é de Lisboa, a mulher deixou-o há coisa de um ano, ganha bem e, ultimamente, o Pedro Manuel não lhe conhece nenhuma namorada.
Era engraçada a maneira como a minha amiga enchia a boca, para dizer o nome do marido, Pedro Manuel. Era mesmo fã dele. Que inveja de um amor assim!…
Finalmente, o Adónis tinha qualquer coisa que não me agradava. Para a mulher o deixar, e não ser ele a deixá-la, algum defeito grave ele tinha de ter. Não é de ânimo leve que se deixa um monumento daqueles.
O carro dele não podia ser outro. Era um MG descapotável, do princípio dos anos 70, vermelho, com estofos em couro. Perfeito!…
- Então, conte-me lá, há muito que é amiga da Alice e do Pedro?
- Há séculos! Andámos a estudar juntos e eu e a Alice começámos a trabalhar juntas na mesma empresa.
- Mas a Alice não trabalha, está em casa com os filhos, o que é de louvar. A minha mãe nunca trabalhou, apesar de ter o curso de professora, sempre ficou em casa, onde fazia falta.
Mau! A conversa estava a azedar! Mas que raio de mentalidade pré-histórica era aquela? Continuou ainda:
- A razão do meu divórcio foi precisamente essa. Eu queria que a minha mulher deixasse de trabalhar para pensarmos em ter filhos. Ela achava que uma mulher podia ser uma boa mãe e, mesmo assim, ter uma carreira profissional.
Eu estava muda. Vi o meu Adónis a desmoronar-se. Olhei para ele e, pela primeira vez, achei-o horrível. Mas continuou e ainda se afundou mais:
- Para mim, a mulher é uma flor que temos de regar, alimentar e olhar por ela a todos os instantes, por ser frágil, delicada e carente, por natureza.
Então, saltou-me a tampa:
- Olhe, Adónis, perdão, Salvador, não se importa de parar o carro?
- Mas, é aqui que mora?
- Não é aqui que moro, mas é aqui que fico. É que estou a um passo de vomitar e não quero sujar o seu carro, de maneira nenhuma.
Ele parou o carro e, como um gentleman que era, saiu para me abrir a porta.
- Posso telefonar-lhe amanhã, para jantarmos juntos?
- Claro que me pode telefonar – respondi. Eu é que não vou atender – pensei.
Fiz o resto do percurso para casa a pé, depois da sua insistência em me acompanhar. Ora não querem lá ver aquele marmelo engravatado, que se achava superior a nós, mulheres, que qualificava de “delicadas”! Com certeza nunca viu o que uma mulher consegue fazer em casa, depois de um dia de trabalho. Prepara um maravilhoso bacalhau com natas. Enquanto ele está no forno, aspira a sala, num instantinho, com a filha de cinco anos sentada em cima do aspirador. Escolhe a roupa que, no dia seguinte, ela e a filha vão vestir. Jantam as duas juntas, enquanto conversam sobre o jardim-escola. Lêem mais um livro da Anita e acabam por adormecer as duas no sofá, enquanto, na cozinha, a máquina da loiça trabalha e a da roupa dá por finalizada mais uma missão.
No aparelho de CD, Jorge Palma canta: Frágil, esta noite estou tão frágil…

A. Luz

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