A Vida dá, a Vida tira...Ana Fonseca da Luz




No dia em que chegaste, olhei-te e logo te instalaste no meu coração.
No dia em que chegaste, contigo chegaram tantos sonhos, tantas vontades, tantas incertezas, tantas esperanças…
Recebi-te como quem recebe o melhor dos presentes.
E afinal, tu foste o melhor presente que uma mulher pode receber… um filho.
Impossível descrever a transformação que sofre o coração de uma mãe quando é presenteada com a bênção da maternidade.
É indescritível a sensação de plenitude e de gratidão por recebermos tamanha graça.
Criei-te sozinha.
O teu pai tinha pressa de viver, enquanto eu apenas tinha urgência em te fazer feliz, e deixou-me, tinhas tu 4 anos.
Não imaginas o que aquele abandono me doeu e me fez crescer como ser humano.
De um dia para o outro passei a ser a tua mãe o teu pai, pelo qual durante meses perguntavas incessantemente.
Contava-te então histórias mirabolantes sobre um pai que te inventei.
Disse-te que tinha ido para um país muito longe para ganhar muito dinheiro, para que tu pudesses ter tudo o que os outros meninos tinham.
Escrevia-te cartas em nome desse pai distante, que te lia à noite, antes de dormires, para que sonhasses com ele.
E alegrava-me chorando, ao ver o brilho dos teus olhos, quando te lia essas cartas em que o teu pai dizia morrer de saudades tuas mas que tinha de ficar lá longe, para ganhar muito dinheiro, para que pudesses mais tarde estudar e ser doutor.
E tu dizias-me baixinho:
- Mãe, mas eu não quero ser doutor, quero ser bombeiro e artista de circo. Diz ao pai para vir que eu não quero ser doutor…
Abraçava-te e dizia-te:
- O pai sabe o que faz…
Enquanto isto, e para que nada te faltasse, eu tinha 2 empregos e eram os teus avós que passavam a maior parte do tempo contigo.
No entanto, as horas que passávamos juntos eram todas aproveitadinhas ao segundo, para te compensar o melhor que podia e sabia.
Quando estávamos juntos era como se uma luzinha se acendesse, tal era a nossa perfeita cumplicidade. Tal era o amor que nos unia.
Cresceste sem pai e eu ia-me convencendo que afinal ele nem te fazia muita falta.
Tinhas tudo o que querias, eras mimado pelos teus avós e por mim e a pouco e pouco foste deixando de perguntar por ele, apesar de, durante algum tempo, eu te ir ainda escrevendo cartas em nome dele, a dizer que um dia ia voltar.
Depois desisti de te mentir. Tu estavas com treze anos e um dia disseste-me que sabias muito bem que o pai não queria saber de nós para nada.
E a conversa, a confissão, aconteceu. Contei-te toda a verdade, cheia de medo que de algum modo, me culpasses de te ter mentido.
Mas não. Aquela luzinha que sempre se acendia quando estávamos juntos, brilhou ainda mais forte e abraçaste-te a mim a chorar.
Chorámos os dois e ficámos ambos mais aliviados com a verdade. A verdade é realmente libertadora.
Levávamos uma vida confortável, porque eu mantinha os meus dois empregos e a vida corria-nos bem.
O teu pai era agora uma porta fechada que tu não querias reabrir.
Concordei contigo no dia em que me disseste que ele não nos merecia e que não precisávamos dele para nada. Tinhas realmente razão. Estava na hora de levarmos a nossa vida para a frente.
Depois de tantos anos, sozinha, encontrei um novo amor.
Confesso que estava cheia de medo de te contar, mas a verdade é que quando te contei, me disseste que estavas contente e que já tinhas desconfiado, porque eu agora passava a vida a cantar e estava sempre distraída e que isso era sinal de que estava apaixonada.
Olhei para ti e enchi-me de orgulho de nós dois.
De mim porque, apesar de tudo, tinha sido uma mãe que te tinha passado todos os princípios que os meus pais me tinham passado a mim. E de ti, porque eras um menino corajoso, autêntico e feliz.
Aos quinze anos mudaste de escola. O teu melhor amigo ia mudar e tu querias mudar também.
Não me pareceu boa ideia mas, tanto insististe, que te deixei mudar.
Estavas feliz. Eras quase um homem e eu, apesar de te querer feliz, também achava que tinha chegado a minha hora de o ser também e provavelmente, foi aí que deixei de estar tão atenta. Foi aí que te perdi.
Apesar de continuares carinhoso comigo, alguma coisa tinha mudado. Chegavas mais tarde a casa, parecias ausente e passavas muito tempo fechado no teu quarto com os teus amigos.
Depois, pensava melhor e lembrava-me que já tinha tido a tua idade e que nessa fase também eu tinha sido rebelde, que todas as minhas prioridades e interesses tinham mudado e, mais uma vez fui descuidada, desatenta aos sinais que estavam todos lá mas que eu me negava em aceitar.
Um dia confrontei-te, cheia de medo da tua resposta e perguntei-te se tomavas drogas.
- Ó mãe, hoje em dia toda a gente fuma uns charros, não te preocupes. Eu sei o que faço.
Os meus alicerces caíram por terra. Não esperava tanta sinceridade. Confesso que esperava que tu me mentisses. A mentira era mais fácil de aceitar do que aceitar que o meu filho se drogava.
Não sabia como lidar com a situação. Interrogava-me constantemente onde é que eu tinha falhado. Como era possível o meu filho falhar-me daquela maneira.
Passei a ter medo de falar abertamente contigo.
Criou-se uma barreira invisível entre nós e mais uma vez falhei por não te ter confrontado como devia ser. Por não me ter informado com quem sabia lidar com a situação. Por não me aconselhar com pais que já tinham passado pelo mesmo. Por não ter sido uma boa mãe…
Foste passando de ano, porque eras inteligente. Chegaste mesmo a entrar para a faculdade, mas já não eras o meu menino.
A meio do primeiro ano da faculdade, disseste-me que não querias estudar mais.
Que querias trabalhar.
Eras um craque em informática e facilmente arranjaste emprego, apesar de eu te suplicar que voltasses à faculdade.
Mas nessa altura, já não era fácil falar contigo.
Quase não paravas em casa.
Pedias-me dinheiro constantemente apesar de teres ordenado e, sem eu saber, pedias também dinheiro aos teus avós que to davam às escondidas.
Dizias-lhes que querias abrir uma empresa de informática e que me querias fazer uma surpresa.
Os teus avós acreditaram em ti e passaram para a tua conta uma avultada quantia de dinheiro.
Entretanto o meu romance acabou porque eu já não conseguia ser feliz. Tu tinhas sido sempre a minha prioridade. Se tu não eras feliz, eu também não podia ser.
Entreguei-me mais intensamente ao meu trabalho e aí, falhei novamente porque te via a caminhar para o precipício e continuava a enterrar a cabeça na areia e a fingir que aquilo era apenas uma fase passageira.
Mas não foi uma fase passageira…
Perdeste o emprego porque passavas a vida drogado.
E nessa altura, só nessa altura, em que estavas completamente arruinado é que acordei.
Contei aos teus avós o que se passava. Não aguentava mais fazer aquela caminhada sozinha. Foi aí que soube que os teus avós te andavam a dar dinheiro sem eu saber.
Houve uma altura em que estiveste mais de 2 meses sem vir a casa.
Quase morri.
Telefonava-te todos os dias mas nem sempre atendias.
Um dia em que te perguntei onde estavas, disseste-me que estavas na praia com uns amigos e que precisavas que eu te pusesse dinheiro na conta.
Pela primeira vez disse-te que não. Que não te dava nem mais um tostão e que os teus avós também já não te davam dinheiro nenhum. Gritaste comigo, insultaste-me e eu desliguei-te o telefone porque aquela pessoa que estava a falar comigo, não podia ser o meu filho.
Finalmente um dia regressaste a casa.
Vinhas sujo, cheiravas mal e cheio de fome.
Tinhas um olhar perdido e dizias coisas quase sem nexo. Fingias que estavas muito feliz, rias-te de disparates que dizias. Voltei a ser a tua mãe e dei-te colo. Nenhuma mãe nega colo a um filho.
Os filhos não são só nossos filhos quando fazem coisas bem feitas. Quando fazem disparates, é quando mais precisam de nós.
Foi o que fiz. Resolvi dar-te colo. Mimar-te. Amar-te mais do que nunca.
Eu sabia que aquele menino que queria ser bombeiro e artista de circo estava algures por ali. Escondido pelas drogas, mas continuava ali.
Ajudei-te a tomar banho, porque nem isso conseguias fazer sozinho. Dei-te de comer à boca e continuei a perguntar a mim mesma onde é que eu tinha falhado.
Chorei toda a noite.
O meu menino estava em casa mas eu não sabia por quanto tempo.
Tinha tomado uma decisão. No dia seguinte iria informar-me. Iria recorrer a uma instituição e iria apoiar-te e ajudar-te a sair do fundo daquele poço.
Quando se chega ao fundo do poço, só existe uma solução, é sair de lá. Já não se pode descer mais, e tu estavas no fundo desse poço. Restava-te apenas sair de lá com a minha ajuda.
Mais uma vez tinha de ser mãe e pai.
Quando finalmente tinha conseguido adormecer, acordei com barulho na casa.
Eras tu.
Abrias as gavetas, os móveis, parecias estar a sofrer.
Tinhas dores no corpo, dizias-me tu. Precisavas urgentemente de uma dose.
Fiquei muda.
Fiquei paralisada.
Não sabia o que fazer. Parecias possuído.
Querias que eu te desse dinheiro.
Disse-te que não tinha.
Pediste-me o cartão multibanco.
Ganhei coragem, apesar de começar a ter medo da tua reacção, e disse-te que não to dava.
- Se não me deres dinheiro eu morro, e a culpa é tua.
Tapei os ouvidos. Não queria ouvir o que tu dizias e caí num choro convulsivo enquanto saías batendo a porta com força.
Foi a última vez que te vi vivo.
Durante mais de uma semana não soube nada de ti.
Liguei-te mil vezes para o telemóvel, mas não atendias.
E eu desesperava a cada segundo que passava porque as tuas palavras não me saíam da cabeça “eu morro e a culpa é tua”.
Deixei de trabalhar. Durante dias procurei-te junto de todos os teus amigos. Corri todos os becos que eles me indicaram e que tu frequentavas. Vi o que nunca pensei ver na minha vida e não percebia como era possível o meu filho, o meu menino, ter percorrido aqueles caminhos.
Mas o desespero todos os dias me dava mais força para te procurar. Os bons amigos mobilizaram-se e não me deixaram sozinha na minha busca. Calcorrearam becos e esquinas comigo onde se viam jovens e menos jovens, de seringas espetadas nos braços, onde nos ofereciam droga e onde até nos tentaram assaltar.
O meu ex-namorado foi nessa altura o meu melhor amigo. Não me deixou sozinha um minuto e percebi que os nossos caminhos se tinham cruzado novamente e que entre nós as coisas ainda podiam dar certo.
É nestes momentos que se reconhecem os verdadeiros amigos. Quando parece que a vida não quer nada connosco.
Uma noite em que estava com os meus amigos a estabelecer um plano para a procura do dia seguinte, tocou o telefone.
Era da polícia. Tinham encontrado um corpo num aterro ali próximo e desconfiavam que era o teu.
Não me perguntem onde fui buscar as forças para ir até lá reconhecer o corpo. Não o sei…
Aquela força não era minha. Entrei na morgue sozinha. Não quis ninguém para me acompanhar naquele momento. Tinha-te criado sozinha. Também queria estar agora sozinha, porque no meu íntimo, eu sabia que eras tu.
Quando abriram a gaveta, as pernas fraquejaram-me. Pensei que ia desmaiar.
O meu menino estava ali…
Magro, de olhos abertos para um céu que só tu vias.
Fechei-te os olhos, beijei-te, passei-te a mão pelo rosto gelado e vi que estavas sereno como há muito não te via.
Só no fim, consegui chorar.
Estou acompanhada pelos meus pais, pelos meus melhores amigos e completamente sozinha.
Esperam-me dias muito difíceis mas desisti de me culpar ou de o culpar a ti.
Tu foste realmente o melhor presente que a vida me deu e me levou…
Cremei-te o corpo.
Tenho as tuas cinzas numa pequena urna que vou espalhar junto à sede dos bombeiros e a um circo que, milagrosamente, ontem chegou à cidade.


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