A CONFIDENTE... Ana Fonseca da Luz




Estou sozinha no meu quarto. Não dormi toda a noite. Estou cansada e com olheiras profundas.
Não estou realmente sozinha. A minha confidente está comigo. É minha confidente desde a primeira vez, há quase quarenta anos, em que recorri a ela. É uma Nossa Senhora em mármore de Carrara, que tenho no meu oratório. Este oratório está na minha família há várias gerações e vai passando para a filha mais velha. Há cinco anos, quando a minha mãe morreu, passou finalmente para mim. Tenho-o sempre aberto de par em par, tal como no tempo da minha avó materna e, depois, no tempo da minha mãe. Não é um móvel. É família.
A minha mãe ia servir um chá a umas amigas. Eu devia ter os meus seis anos. A Júlia, nossa empregada há vários anos, desdobrava-se em duas, na cozinha, para ter tudo impecável, tal como a minha mãe gostava. A cozinha cheirava a pãezinhos de trigo e a torta de côco. E dois bules de porcelana aguardavam que lhes vertessem dentro os dois chás preferidos da minha mãe: lúcia-lima e laranjeira. Chá preto não entrava lá em casa, desde que o meu avô tinha morrido. O seu aroma lembrava à minha mãe tempos idos, em que ela e o seu pai bebericavam chá preto, à lareira, mais por vício do que realmente pelo gosto do chá.
Mas, como eu dizia, antes de me perder em divagações, na cozinha, a nossa Júlia, que por acaso nem se chamava Júlia, mas Maria da Sanguinheira, nome que não se põe a ninguém, como dizia minha mãe, a nossa Júlia rezava para que estivesse tudo como a minha mãe gostava.
Na sala, a mesa estava aberta. Sobre a toalha de linho, que herdara da minha avó, a minha mãe tinha posto o melhor serviço de chá. A mesa estava salpicada com pequenos pratos cheios de bolinhos de manteiga, que a nossa Júlia tinha feito na véspera, porque a minha mãe achava que ficavam muito mais saborosos de um dia para o outro.
Nesse dia, a minha mãe resolveu deixar-me ficar na sala, a tomar chá. Talvez por eu já andar na escola e ela querer exibir a filha, que já estava a deixar seis belíssimos anos inteiramente dedicados ao analfabetismo. Mas antes, recomendou-me mil vezes que não me metesse na conversa dos mais velhos e que só falasse, quando falassem para mim.
Assim foi. As tias chegaram, algumas cheirando a naftalina. Eu, conforme recomendação, portei-me que mem uma princesa. Pelo menos até uma das tias se ter lembrado de se virar para mim e me perguntar:
- Então, Isabelinha, o que é que a menina quer ser, quando for grande?
- Eu, quando for grande, quero ser burra como a minha empregada e encerar corredores.
A minha mãe mudou de cor e abriu-me os olhos de tal maneira que me pareceram duas lanternas acesas. Compreendi que tinha metido água e apressei-me a dar o meu chá por terminado.
- Posso sair, mãe?
- É melhor que saias, é. Vai ler a lição.
- Que engraçada que ela é! – disse a tia que me tinha interrogado, sem realmente me ter achado graça nenhuma.
Foi nesse dia que, pela primeira vez, Nossa Senhora da Conceição passou a ser minha confidente.
Ao fundo do corredor estava o oratório, aberto. Como vi a minha vida a ficar negra, resolvi recorrer a uma força superior. Talvez por ser a imagem que estava ao alcance do meu olhar, pedi-lhe:
- Ó minha santinha, ajuda-me, que a mãe parece-me zangada.
No instante em que olhei para a imagem, pareceu-me ver a santa a sorrir! Pode lá ser?! A santa de pedra a sorrir, ela que tem sempre um olhar tão sereno e quedo?! Voltei atrás para ver melhor e lá estava ela a sorrir! A partir desse dia, e sem ninguém saber, sempre que tinha alguma preocupação, ou alguma prova no dia seguinte, recorria a ela.
Anos mais tarde, estava eu já no primeiro ano do colégio, como tinha recebido um Bom a Francês, resolvi ir agradecer-lhe. Nesse instante em que mentalmente lhe contava o meu dia no colégio, pareceu-me ver uma lágrima fininha correr-lhe pela cara abaixo! Não podia ser! Mas era. A minha santinha estava a chorar.
Nesse momento, a minha Júlia saía da sala, enxugando o seu pranto no avental.
- Vá à sala, minha santinha, que a mãe quer falar consigo.
Na cadeira de baloiço, onde só o meu pai querido se sentava, a minha mãe chorava.
- O teu pai morreu, filha. Morreu na guerra, a defender o seu país. Devemos ter orgulho nele.
O meu pai tinha morrido, na mesma guerra em que tinha morrido o pai de um colega meu e o filho do nosso padeiro. Mas que guerra era aquela que nos levava quem nos amava e gente que conhecíamos? E tínhamos de nos sentir orgulhosos? Eu não, nunca!
A partir desse dia, a minha mãe deixou de privar com a família do meu pai. Antes dele morrer, ainda tinha de os engolir, de quando em vez. Mas agora que ele tinha morrido, já não tinha de se submeter a esse sacrifício. Certo dia, ouvi a minha mãe dizer à nossa Júlia:
- Os nossos maridos não deviam ter família!
Só anos mais tarde, já casada, compreendi o que ela queria dizer. Sábias palavras.
Estou sentada no meu quarto. A carta, ainda por abrir. Não tenho coragem. Não dormi toda a noite e tenho um nó no estômago e na garganta. Esta carta que tenho na mão tem o resultado de uns exames que fiz. Antes de abrir a carta, vou ver a minha santinha. Vou olhá-la nos olhos. Vou ver se sorri ou se chora.
Levanto-me com esforço, como se pesasse centenas de quilos. No momento em que abro a porta, uma corrente de ar, vinda nem sei de onde, porque todas as janelas estão fechadas, deita por terra a imagem da minha santinha e, sobre ela, a jarra de rosas que sempre a acompanha.
Compreendi tudo. A minha confidente não teve coragem para me olhar nos olhos. Teve medo de não conseguir esconder as suas lágrimas. Apanhei-a do chão, limpei-a à ponta do meu casaco de dormir e voltei a pô-la no seu lugar, sem sequer olhar. Tenho a certeza de que, se me voltasse para trás, iria apanhá-la a enxugar o seu pranto no manto.
Volto a sentar-me no meu sofá de orelhas e deito a carta no lixo, sem sequer a abrir. O nó que, antes, eu tinha no estômago tomou agora conta de todo o meu corpo. Neste momento, a minha filha mais nova, que tem agora seis anos, entra no meu quarto.
- Mãe, posso contar-te um segredo?
- Podes, filha, conta.
- Sabes, ontem, quando eu vim pôr as rosas no oratório, vi Nossa Senhora chorar! Não digas nada a ninguém, não, mãe!…

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