Mas eu não tenho asas... Francisco Valverde Arsénio


«Mas eu não tenho asas». Mesmo assim pedes-me que te leve para esse céu infinito onde a leveza do algodão das nuvens nos faz esperança, desejos, saudade, memória, e que sejamos mundo em cada instante partilhado. «Mas eu não tenho asas» e as mãos estão vazias. O céu está cada vez mais azul e tu pintas tudo de azul, até os meus olhos castanhos têm a cor do mar Egeu, o mundo é azul porque é de azul que pintas a alma, a benquerença, a quietude, o primeiro encontro.
Já tentei contar as cores do arco-íris mas perco-me nas esquinas e deixo de saber quem sou, há um desprendimento de mim no momento em que é mais intenso o querer-te. Momentos há em que até tenho medo dos sentimentos ao invés de correr para eles, na tentativa de me perder em ti. E tu pedes tão pouco, basta um abraço, um vaso pintado no quintal a dizer «amo-te» e sei que obteria aquele sorriso que te caracteriza, aquele que guardas para as ocasiões especiais. Às vezes basta tão pouco que, por ser ínfimo, não se dá importância, mas queres fazer-me crer que sou belo porque os teus olhos teimam em o escrever e dizer em cada instante, que uma ou outra ruga me dá charme ou que o tango desajeitado que danço parece uma valsa inglesa. É preciso tão pouco, quase nada para se ter tudo. «Mas eu não tenho asas» nem posso migrar na mudança das estações como fazem os pássaros. Enlaça-te nos meus braços e cruzemos a noite juntos, sejamos os últimos noctívagos da cidade vazia, as últimas luzes mortiças das avenidas, dos retratos disformemente reflectidos pela sujidade das montras… cruzemos a noite presos pelos dedos. Ah, como gosto da noite, do cheiro da cidade a dormir, do vento nas árvores, do apito do comboio que se perde ao longe. E tu pedes tão pouco… «Mas eu não tenho asas» nem sou rio, como posso cruzar os ares ou embalar-te da nascente até à foz? Deambulo por um caminho que me traz sempre de volta, percorro eternamente as mesmas ruas e as noites acabam inexoravelmente nas mesmas madrugadas.
Amanhã haverá novas marés e espero que não esqueças o mar que nos uniu, pois é nele que consigo vislumbrar o reflexo que me acompanha nas noites em que o tempo desaparece. «Mas eu não tenho asas». E apesar disso, já cruzámos olhares nas palavras, já procurámos o mesmo antídoto para as insónias que teimam em persistir ou um simples silêncio para a solidão demasiado ruidosa. E tu pedes tão pouco, e eu vejo sempre os mesmos telhados, as mesmas casas, as mesmas ruas, os mesmos cheiros.
Ajeito melhor a caneta nos dedos e transporto para a folha vazia o meu mais profundo sentimento, ganho asas, conquisto os tons de azul e partimos por esse céu infinito na leveza do algodão das nuvens.

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