O SÓTÃO... Ana Fonseca da Luz


O sótão da minha avó era um lugar encantado. A casa até era grande e tinha um pátio convidativo e cheio de sombras para brincar mas, era o sótão, que exercia um encanto quase mágico em mim. A porta da cozinha, que dava para o sótão estava sempre fechada à chave e era como se não existisse, porque a minha avó sempre me disse que por detrás dela, não havia nada para ver. No entanto, eu sabia muito bem que ela me estava a mentir, por isso, sempre que podia, tentava rodar a pesada maçaneta em forma de flor. Com o tempo, habituei-me a ver aquela porta alta e castanha, como se fosse apenas um enfeite que a minha avó se tinha lembrado de pôr na cozinha para quebrar a monotonia do branco com que pintara as paredes. A primeira vez que fui até lá, pela mão magra e ossuda da minha avó Esmeralda, tinha 8 anos e tinha acabado de perder o meu pai, depois de uma doença prolongada, que tinha deixado a minha mãe corroída por uma tristeza imensa e a mim, numa espécie de limbo que não me deixava compreender se era realmente verdade que o meu pai tinha partido para sempre.

Era domingo e eu e a minha mãe tínhamos ido passar o dia a casa da avó Esmeralda, para assim, tentar amainar aquela tristeza que nos tinha invadido. A minha avó, apesar de ter perdido o seu único filho, permanecia serena e resignada, embora tivesse ficado com a cara sulcada de rugas de um momento para o outro. A minha avó Esmeralda, naquele momento, era a nossa âncora, o nosso porto de abrigo e apesar de toda aquela serenidade, eu sabia o quanto ela devia estar a sofrer em silêncio, enquanto a minha mãe permanecia sempre de lágrimas nos olhos e de mãos trémulas, por causa dos comprimidos que tomava para conseguir superar a sua perda.

Lembro-me que almoçámos em silêncio apesar de eu gostar muito de tagarelar à mesa. A minha avó tinha feito pato escondido no forno, que era o prato preferido do meu pai. A minha mãe comeu em silêncio, bebendo as lágrimas silenciosas que lhe corriam pelo rosto e fungando entre uma garfada e outra. Afável, a minha avó, pousou a sua mão sobre a dela e deu-lhe um lencinho de assoar sorrindo-lhe e dizendo-lhe para não ter vergonha de chorar.

- Então por que não chora a senhora minha sogra? – perguntou-lhe a minha mãe.

- Porque tenho de ter forças para limpar as tuas lágrimas e porque alguém tem de sorrir para a tua filha – respondeu a minha avó de olhinhos tristes.

A minha mãe apertou a mão da sogra, com carinho, mas continuou a depenicar a comida e a beber as próprias lágrimas. Depois do almoço e depois da cozinha arrumada, a minha mãe sentou-se na sala com a televisão a olhar para ela, enquanto se perdia nas suas mais profundas recordações de momentos vividos com o meu pai. A minha avó ainda se sentou para se agarrar à camisola de malha que me fazia, mas a tristeza fazia-a enganar-se no ponto e ao ver-me tão silenciosa, a despir e vestir a boneca e a agarrar-lhe violentamente nos cabeços a ponto de ficar com os seus cabelos loiros e sintéticos nas mãos, largou a malha e veio sentar-se no chão ao meu lado. Adivinhava pela profundidade do meu silêncio o tamanho da minha dor. As avós são assim, adivinham-nos a alma.

- Parece-me que chegou o dia de te mostrar uma coisa que há muito queres ver – disse-me a minha avó pegando-me na mão para melhor se levantar do chão.

Então, de mão dada com ela, enquanto a minha mãe permanecia em silêncio olhando uma moldura onde se via o meu pai quando tinha mais ao menos a minha idade, encaminhámo-nos até à cozinha. Eu não fazia ideia do que me esperava. A minha avó, puxou uma cadeira, pôs-se em cima dela e tirou de cima do alto frigorífico, uma chave grande e antiga que coube na perfeição no buraco da fechadura que dava para o sótão. Os meus olhitos encheram-se de alegria.

- Mas a avó dizia que não havia aqui nada para ver…

- Pois dizia mas agora já és crescidinha e só agora vais conseguir estimar o que sempre esteve aqui.

O coração saltitava-me no peito e a mão da minha avó ficou mais leve, enquanto subíamos as duas pela escada velha e estreita, mas bem conservada, até àquele mundo que me esperava e que me fez soltar um “ah” de espanto quando lá cheguei acima.

Era um sótão com grandes vigas de madeira do tecto, duas janelinhas pequenas que deixavam escoar o sol tímido de Outono e onde reinava a mais perfeita das arrumações apesar de uma fina camada de pó pairar no ar e em todos os objectos que lá se encontravam.

Caixotes arrumadinhos, encostados às paredes, duas velhas arcas que deviam estar cheias de coisas misteriosas de outros tempos, uma máquina de costura em ferro, uma mesa grande cheia de livros, e suspenso no tecto, um baloiço feito de cordas grossas e robustas com um assento pintado de encarnado. Quase larguei a mão da minha avó tal foi a alegria que senti ao ver aquele baloiço a chamar por mim. Mas logo os olhos me caíram num carrinho também ele encarnado com o número nove pintado a branco e onde eu cabia de certeza, porque parecia ter sido feito para mim, não fosse o facto de parecer tão antigo e tão fora de moda. Depois, havia um cavalinho de madeira, um berço de verga, e um sem número de pequenos brinquedos de rapaz que me encheram de alegria porque percebi que tinham pertencido ao meu pai. Naquele sótão estava tudo aquilo com que um dia o meu pai tinha brincado.

- Que tal – perguntou a minha avó de olhos brilhantes e com alguma dificuldade em esconder as lágrimas?

- Ai avó…posso brincar aqui? Posso?

- Olha Mafalda, tudo isto que está aqui, era do teu pai. Agora é tudo teu. O teu pai nunca estragou nada. Será que posso confiar em ti? Será que não vais estragar nada?

- Eu não estrago avó. Juro!

- Não é preciso jurares. Basta que me prometas que um dia, quando tiveres filhos, os vais trazer pela tua mão, ao sótão e mostrar-lhes os brinquedos que foram do avô deles. Vou confiar em ti…

A minha avó, desceu a escada estreita, agarrada ao corrimão, enquanto eu fiquei no meio daquele mundo encantado sem saber para onde me virar. Naquele momento mágico, limitei-me a olhar, apenas olhar, excepto o baloiço que me levou a passear em muitas e muitas idas e vindas, alto, cada vez mais alto, como se alguém me estivesse a empurrar. Pareceu-me uma ou outra vez sentir umas mãozinhas nas minhas costas que me ajudavam a dar balanço e subir um bocadinho mais alto. Depois, já satisfeita, deixei o baloiço e fui ver melhor o berço de verga. Parecia que me lembrava dele. Quando cheguei mais perto, reconheci-o. Era o berço que tinha sido do meu pai e onde eu dormia as minhas sestas, quando era bebé e vinha a casa da minha avó. Não havia dúvidas porque no meu quarto, sobre a cómoda e rodeada de Barbies, estava uma moldura com uma fotografia, onde eu dormia serena dentro daquele berço.

Percorri com os olhos e as pontas dos dedos os livros que tapavam o tampo da grande mesa de madeira. Eram livros escolares de outros tempos e livros de banda desenhada do Tim Tim, do Axterix, do Tio Patinhas e da Mafalda. Que engraçada era aquela menina da banda desenhada. Tinha o mesmo nome que eu. Ou eu o mesmo nome que ela…

Folheei o livro encantada por conhecer aquela menina que também se chamava Mafalda. Não entendi muito bem as estórias dela. Pareceram-me mais para os adultos perceberem, mas nem por isso deixei de gostar dela. Um dia, tinha a certeza, que ainda havia de perceber e rir com as estórias dela e do seu irmão Gui.

Depois sorri ao olhar para o carrinho de ferro e imaginei o meu pai sentado nele a fazer corridas, porque reparei que o chão do sótão tinha uma espécie de estrada pintada a tinta branca. Era capaz de apostar que tinha sido ideia da minha avó, pintar o chão do grande sótão, para que o meu pai se pudesse entreter por lá, nas tardes de chuva.

Quando me sentei no carrinho, percebi que mal cabia nele. Os joelhos ficavam-me de fora e mal conseguia pedalar. Ri alto e pareceu-me que não me ri sozinha. No entanto a minha avó já tinha descido e não havia ninguém no sótão a não ser eu. Mas ouvi rir outra vez e outra e outra, enquanto desajeitadamente, tentava andar no carrinho naquelas estradas pintadas a branco no chão do sótão. Desisti do carro e fui espreitar os brinquedos. Havia carrinhos pequenos, soldadinhos de várias cores, bolas, e peças de lego coloridas. Mesmo coisas de rapaz. Mas eu não me importava. Gostava de tudo …

Sentei-me no chão de pernas cruzadas e comecei a empurrar os carrinhos que miraculosamente voltavam para mim. Comecei a achar piada à brincadeira e imaginei que não estava sozinha. Que bom! Assim tinha com quem brincar. Resolvi chamar ao amigo que não via mas que se ria e brincava comigo, Gui, tal como o irmão da Mafalda. Lá de baixo ouvi a minha mãe chamar:

- Mafalda. Vamos embora. Desce querida.

Que pena, pensei, estava a gostar tanto de estar ali no mundo do meu pai. Levantei-me e reparei que na mesa, onde estavam os livros do meu pai, estava escrito no pó:

“Voltas?”

Sorri.

- Volto no domingo…

Voltei a ouvir rir e reparei que o baloiço estava em movimento como se alguém estivesse sentado nele.

A minha mãe esperava-me cá em baixo à porta do sótão. Parecia menos infeliz.

A minha avó voltou a subir à cadeira e a guardar a chave em cima do frigorífico.

- Mas porque é que a minha sogra guarda a chave aí, e não no chaveiro? – perguntou a minha mãe.

- Sabes uma coisa engraçada? Há mais de um ano que não sabia da chave. Esta noite sonhei que estava em cima do frigorífico. Pareceu-me impossível porque ainda há tão pouco tempo vi que não estava lá. De qualquer maneira, quando acordei, fui lá espreitar e lá estava ela. Não me perguntes como…

A minha mãe escolheu os ombros e não ligou muita importância ao assunto.

- De qualquer maneira, fiquei muito contente de a ter encontrado. Já tinha saudades de ir até ao sótão e matar saudades dos brinquedos do Guilherme. Parece-me que estou a vê-lo a acelerar no carrinho encarnado pelas estradas que lhe pintei no chão.

A minha mãe abraçou a minha avó agradecendo o almoço. Dei um abraço e um beijo à minha avó e disse-lhe que na semana seguinte, quando viéssemos almoçar, queria voltar a ir brincar para o sótão.

- Então, Mafalda, traz bonecas, porque ali só há brinquedos de rapaz e vais-te sentir sozinha. – disse a minha avó.

- Não vou nada. O Gui está lá para brincar comigo.

A minha avó sorriu como se me tivesse percebido e a minha mãe preferiu nem me dar troco, pois sabia que todas as crianças passavam pela fase dos amigos imaginários.

No outro domingo voltei. E no outro. E no outro. Nunca vi o meu amigo Gui. Mas ele esteve lá sempre comigo. A andar de baloiço, a jogar ao pião e nas loucas corridas de carrinhos que fazíamos, na pista gigante que entretanto montei no chão do sótão, com as instruções que o Gui me segredava ao ouvido.

Havia tardes em que ficávamos os dois a rir das piadas da Mafalda, ou do medo que o Axterix e o Obelix tinham de que o céu lhes caísse em cima da cabeça. Outras vezes gostávamos de ficar em silêncio a jogar ao galo no pó da mesa ou simplesmente sem dizer nada, ao lado um do outro. As coisas maravilhosas que eu aprendi com o meu amigo Gui!

Durante mais de dois anos fomos amigos inseparáveis todos os sábados e domingos, até que um dia o Gui me disse que tinha de se ir embora.

- Mas vais para onde se aqui é a tua casa?

No tampo da mesa ele escreveu:

“para o céu”

Foi a última vez que falámos. Nessa noite sonhei com ele e pela primeira vez vi a sua cara enquanto me dizia adeus. Tinha a cara do meu pai. Igualzinho à fotografia que a minha mãe tanto gostava de olhar quando estamos em casa da minha avó. Acenei-lhe no meu sonho e disse-lhe:

- Adeus pai.

Ele sorriu e disse-me:

- Não me chames pai. Para ti serei sempre Gui.

Acordei com a nítida sensação de que o tinha realmente visto e que não tinha apenas sonhado. Ainda pensei levantar-me e ir contar à minha mãe mas depois, achei melhor não.

Finalmente ela começava a fazer a sua vida sem comprimidos. Já sorria. Já saía com as amigas e recomeçava a viver.

A quem eu não pude deixar de contar foi à minha avó. Contei-lhe tudo. A minha avó chorou de felicidade e disse-me:

- Se calhar está na hora de deixares de brincar no sótão. Temos um jardim tão bonito e está tanto solinho…

- Eu sei avó. Vou só lá acima um bocadinho. Depois, só lá volto quando tiver muitas saudades

A minha avó rodou a grande chave na fechadura e eu subi as escadas a correr, como sempre. Estava quente lá em cima. O baloiço estava parado e reinava o mais profundo dos silêncios. Sentei-me no baloiço, mas ninguém me empurrou. Dei uma voltinha no carro encarnado com as pernas a sobrarem-me lá dentro, mas ninguém se riu. Empurrei os carrinhos conta a parede, mas ninguém os mandou de volta. O Gui tinha-se mesmo ido embora. No tampo da mesa ainda estava o último jogo do galo que tínhamos jogado e ao lado, escrito no pó, reconheci a letra do meu amigo que me deixava um último recado:

“já não estou aqui mas estou sempre contigo.”

Desci a escada vagarosamente. Dei a volta à chave e entreguei-a à minha avó que a guardou no chaveiro junto às outras chaves.

A minha avó beijou-me a testa, sorriu feliz e perguntou-me:

- E se fossemos comer um pão com marmelada e queijo como tu tanto gostas?

Acenei com a cabeça porque na verdade ainda me sentia triste por pensar que nunca mais ia brincar com o meu amigo. A minha avó, que lia na minha alma como quem lia num livro aberto, disse-me:

- Mafalda, não fiques triste. Ele não se foi embora. Só vai realmente embora se o esqueceres, por isso ele vai estar sempre aí num cantinho do teu coração. É só tu deixares…

Abracei a minha avó com força e fui brincar para o jardim onde me esperava um dia de sol. Olhei para as janelinhas do sótão e percebi que a minha avó tinha razão. Eu nunca tinha visto o Gui e no entanto sabia que ele existia, tal como sabia que ele e o meu pai eram a mesma pessoa e que o meu coração era suficientemente grande para guardá-los para sempre.

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