OS BRINCOS DE OURO... Ana Fonseca da Luz


Entra em casa. Estão os dois encostados ao aquecedor e tentarem enganar o frio do Inverno, que já lhes está entranhado na velhice dos ossos.
Há muito que não via os pais. Uma briga de família, tinha-a afastado deles e da irmã. Ela que nem ligava muito a “coisas”, ela que sempre tinha dado mais valor aos sentimentos do que às coisas…
Os sentimentos são quase sempre eternos, já as coisas, todas as coisas, são-nos apenas emprestadas, enquanto andamos cá neste mundo. Mas a verdade é que não gostava de ser tomada por parva.
Ninguém gosta. Nem as pessoas, que tal como ela, são desapegadas dos bens materiais.
Por isso, esteve muitos meses sem ir a casa dos pais.
Só voltou, porque a irmã lhe telefonou, a dizer que o pai estava mal. Ia ser internado. O coração estava cansado e começava a querer desistir desta vida.
Apesar da raiva, que às vezes quase a sufocava, não podia de maneira nenhuma deixar de ir ver o pai. Todos erramos e todos devemos saber perdoar, para que um dia, também nos perdoem a nós.
Foi. De coração apertado e com um sorriso que não era o dela mas, foi ver o pai.
O pai olhou-a com uma ternura carregada de lágrimas, que tenha vergonha de derramar, apertou-lhe a mão, fortemente, junto ao peito e num gesto ternurento, tirou-lhe a franja que teimava em cair-lhe sobre os olhos e ela compadeceu-se daqueles afetos e no mesmo instante, perdoou aos dois, o que há algum tempo tinha jurado a ela mesma que nunca haveria de perdoar. Mas ela era uma mulher de perdoar fácil. Já esquecer, não esquecia nunca nem quem, nem como a magoavam. De qualquer maneira, optou por praticamente ignorar a irmã. Era melhor assim.
A mãe, sempre em silêncio e com os olhos carregados de tristeza, fez-lhe sinal com a mão para que se ela se sentasse no sofá ao lado.
O pai quebrou o silêncio de muitos meses e perguntou-lhe se estava tudo bem.
Respondeu que sim, que estava tudo bem.
Na verdade, não estava tudo bem. Havia tanta coisa que estava mal mas que ela já deixara de tentar consertar. A vida havia de se encarregar de seguir o seu curso e de devolver ou tirar, conforme o percurso de cada um.
Notava os pais tensos como se lhe quisessem dizer alguma coisa e a verdade, é que eles lhe deviam muitas palavras, muitos afetos, coisas que já não iam a tempo de lhe darem.
Quando a irmã saiu da sala, para ir fazer um chá, o pai tirou do bolso do casaco de malha, que sempre usava por casa, uma caixinha forrada de pano antigo e meteu-lhe a caixa nas mãos, dizendo.
- Toma filha. São para ti. São uns brincos que eram da tua mãe. Quando casares, usa-os. Mas agora esconde-os, para a tua irmã não ver.
Apanhada de surpresa, e provavelmente com cara de parva. apressou-se a esconder a pequena caixa dentro da sua carteira, enquanto o pai a olhava de lágrimas nos olhos.
Era como se aquele presente, que os pais lhe davam, às escondidas da irmã, fosse um pedido de desculpa por todas as coisas, toda a ternura e carinho que nunca lhe tinham dado, ao longo da sua vida.
Só quando chegou a casa, ousou abrir a caixa. Sentia-se como se estivesse a lesar a irmã, quando afinal, ela é que toda a vida, tinha sido lesada e mal amada pelos pais, que pareciam ter uma única filha. A sua irmã.
Não pode deixar de chorar, quando viu os brincos. Eram uns brincos de ouro, compridos cravejados de pequenas safiras, muito valiosos, que a mãe tinha usado no dia do casamento e que, já a sua avó, também tinha usado.
Apertou-os na mão e naquele momento, esqueceu todas as amarguras causadas pelos pais e pela irmã. Não valia a pena. O Universo acabava de a recompensar, apagado aquela raiva surda, que por vezes, sentia pela família.
No dia seguinte, à hora em que o pai ia para a sala de operações, foi despedir-se dele.
O pai sorriu-lhe em forma de agradecimento e apertou-lhe a mão, sem lhe dizer nada.
Viu o pai ser levado na maca, que percorria o corredor do hospital, chiando de velhice e de cansaço, de tantas viagens fazer, com gente que nem sempre regressava com vida.
Ao fim do corredor, o pai acenou-lhe e disse-lhe:
- Se eu não acordar, perdoa-me!
Não consegui responder. Limitou-se a acenar-lhe com uma mão e depois a mandar-lhe um beijo com a ponta dos dedos.
Baixinho, para que nem a mãe, nem a irmã a ouvissem, murmurou:
-Perdoar, perdoo mas nunca vou esquecer a falta que o pai sempre me fez.
O coração do pai, que estava tão cansado de viagens, como a maca que o tinha transportado, não aguentou a anestesia.
A mãe chorou a morte do pai, a irmã fingiu que chorou e ela em toda a sua tristeza, sentia-se feliz por ter conseguido perdoar ao pai, o pai que ele nunca tinha sido.

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