OUVINDO OS DIAS...e a conjugação dos sonhos... Francisco Valverde Arsénio








Se o instante é o momento em que o presente devora o futuro, então os nossos olhos abraçaram-se para a eternidade. Não importa se corremos um atrás do outro como uma sombra multicolor denunciada pelos guizos do arlequim. Estou aqui e tu aí sem impingirmos tempo ao tempo que ainda não vivemos. Olhas-me da mesma forma que vês o mar, perto e longe ou como um guardador de primaveras. Olhas-me como o trigo faz à terra, beija-a em suaves mareares, em ondulações serenas e sucessivas sob o canto das cigarras. Eu fico-me olhando o teu sorriso, o vestido branco, o malmequer que te enfeita os cabelos, o rodopiar gracioso do teu corpo segurando o fio que prende o papagaio de papel.
O amanhecer ainda dorme e continuo a ouvir-te, ainda tens a sombra projectada pela luz da lua, eu olho-te simplesmente porque és a ilusão pura do vento que não quer sonhar. Olho-te num sorriso morno e nem a solidão das paredes me impede de o fazer, guardo-te a cor dos olhos e o respirar enquanto dormes.
Se o instinto é o momento em que o presente devora o futuro, então quero-te todos os momentos antes que a manhã se desvaneça no mar, ver-te a atirar a pequena pedra contra a superfície da água saltitando para lá dos círculos concêntricos.
Não acredito no além, sou alguém do aquém mas levava-te a passear de mão dada na areia da praia ouvindo o eco do teu sorriso e vendo o nevoeiro a dissipar-se no horizonte. Os meus passos entretêm-se a ouvir-te sempre que te escondes de mim e pinto as noites da cor do sol ou da prata da lua.
Uma vez tentaram explicar-me porque o vento não tem cor, porque as nuvens não têm cheiro e a que sabem as madrugadas. Em contrapartida, eu falava de paixão e amor, esses sentimentos que nos rasgam as entranhas. Fiquei sem saber os porquês do vento, das nuvens e da madrugada, mas dei vida a uma tela com a paisagem dos teus olhos, uma dança de flamingos, uma borboleta-monarca. Contornei-te a lápis sem modelo definido, apenas sentindo, assim como se sente a folha que cai no princípio do outono.
Há momentos que não são momentos e instantes que não são instantes, mas há um ponto que é sempre o centro de tudo. Sobre ele, podemos ver o que nos circunda, até os tais momentos e instantes.
Não acredito no além, mas gostava que o vento me levasse num sonho, naqueles onde não há descoberta para que não me roubassem a liberdade de voar como as gaivotas, um sonho em que as palavras se esbatessem entre os passos dados na areia e onde pudesse encontrar um sentido ou um rumo no brilho das estrelas, onde a ausência do tempo-memória me elevasse na essência dos sentimentos.
O sol começa a derreter-se no mar, a cor alaranjada mistura-se com o azul da linha que me orienta os sonhos… o entardecer leva-me as palavras. Ao longe, ouve-se uma melodia inquieta, ouvem-se os búzios e as anémonas, ouvem-se os dias nesta não presença de ti.

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