INSÓNIA... Ana Fonseca da Luz


Eram quatro da manhã. Os olhos estavam pesados, sonolentos. No entanto, o corpo negava-se a dormir. Era assim quase todas as noites, noites longas e solitárias, em que os pensamentos se estendiam e lhe negavam um sono descansado.
Virou a página do livro e chegou à conclusão de que, apesar de os olhos terem percorrido e juntado todas as letras da página anterior, nada tinha sido lido, nada tinha sido percebido. Era assim que ela via a sua vida. Um livro que se lê e relê, mas do qual não se percebe nada. Valeria a pena continuar a ler? Valeria a pena juntar todas as peças da sua vida, mais uma vez, para lhe dar algum sentido?
Quase sem se aperceber, regressou à infância. Tinha andado muitas folhas para trás e ali estava ela, numa tarde de verão, com um vestido às flores, chapéu de palha na cabeça, a correr atrás de uma libelinha. Eram as asas das libelinhas o que mais a encantavam, a fragilidade daquelas asas de cores maravilhosas, que ela invejava. A tia gritou-lhe, lá de dentro.
– Anda para dentro, Ana, que está muito calor!
Estava realmente muito calor, mas, em casa, sufocava. Algo não a deixava respirar. Preferia a rua. Então, pegava na sua bicicleta azul-turquesa que o tio lhe tinha dado, depois de ter passado, com boas notas, no exame da 4ª classe e aí ia ela para um passeio até ao jardim do coreto. Havia árvores frondosas no jardim, mas nem mesmo assim o calor deixava de ser sufocante. Aí, voava na sua bicicleta, que todos os meninos invejavam, e pedalava, sem as mãos no guiador, como tinha visto fazer no circo onde tinha ido uns dias antes e, de braços abertos e a olhar em frente, parecia-lhe que voava.
Depois, vinha a fome. Voltava para casa, com as faces rosadas e brilhantes do calor.
– Mas, como é que consegues andar na rua com este calor? – perguntava a tia, preocupada, não fosse ela ficar doente.
Nunca estava doente! Talvez fosse de brincar tanto ao ar livre, talvez fosse por fugir daquela casa sempre que podia e onde não era feliz. Em vão a tia a tentou ensinar a bordar, a fazer renda e malha. Nada! A tia comentava:
– Mas como é possível tu não conseguires aprender um ponto que seja? Para que terás tu jeito, menina?
Ela não sabia e, sinceramente, não se ralava absolutamente nada. O que ela gostava era de brincar, de correr atrás das libelinhas e sonhar que um dia havia de ter umas asas como as delas, frágeis e coloridas.
Voltou à realidade, à sua realidade presente. As letras juntavam-se à frente dos seus olhos e as palavras não faziam qualquer sentido. Fechou o livro e adormeceu.
Acordou num sonho. Teve dificuldade em se reconhecer. Qualquer coisa lhe fazia peso nas costas. Olhou para trás e ali estavam elas, duas majestosas asas, frágeis e de um cor-de-laranja transparente. Sorriu, ajustou as asas, balançou-as ao mesmo tempo e, a medo, levantou voo. Já lá em cima, avistou a sua antiga casa e ouviu a voz da tia que lhe dizia:
– Anda para casa, Ana, que se faz tarde e são quase horas de jantar!
Não ligou ao que lhe era dito e voou toda a noite.
Acordou já tarde. Sob ela estava o livro que andava a ler, “Pássaros de Seda”. Lá fora, uma libelinha de asas frágeis e cor-de-laranja voava, anunciando mais um dia de calor.

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