Uma caminhada inacabada... Francisco Valverde Arsénio


Paira uma inexorável calmaria no meu semblante sulcado pela vida, cada novo passo é a intercepção de outros deixados para trás. Piso firme e de olhar cortante, miro o firmamento e cogito no deserto, abro mão das estrelas e agarro-me às sombras e aos ruídos imperceptíveis. Fico-me assim pelas palavras secas entre o objecto e a candura dum desejo. Não importa o estado do tempo, não quero saber se faz frio ou calor, apetece-me apenas um copo de água e aguardo por mim com a paciência de todos os amanheceres.
Não sei se amanhã estarás por aqui, não sei se vens, mas há sonhos que valem pelo todo, pela magnificência do hoje, pelo momento em que viajei contigo pelas teias do incompreensível. És a história que se escreve na volúpia do ser. Vou aprendendo contigo e acumulo novos saberes e assim evoluo e cresço nas nossas diferenças. Hoje distingo melhor os significados dos significantes e que há em mim um pouco de ti porque és fonte onde sacio a sede.
Descobri-te no silêncio e quase te perdi no vazio de mim, em ti acalentei mil sonhos, subi e desci ruas e rumei ao porto quando me senti naufragar. Descobri-te no silêncio, num silêncio de cristal em que os ecos do passado se ouviam no outro lado do esquecimento. Dissemos mil palavras trocadas por outros tantos silêncios e fomos deixando para trás o vazio das utopias amorosas. Agita-se em mim o borbulhar do entusiasmo da minha existência, posso não ser magnânimo mas sinto a candura da substância viva.
Amo-te independentemente do nevoeiro que irrompe entre nós, abraço-te como tantas vezes abracei, como da primeira vez que te vi. Abraço-te novamente, aperto-te contra o peito e viajo no teu calor, abandono-me em ti porque me invades e esqueço-me de mim. Amo-te porque és uma caminhada inacabada, as folhas do livro que falta escrever, és quimera, ousadia, desafio a que me entrego com fervor. Amo-te, fecho os olhos e o meu pensamento voa até ti, procuro novamente ruas e travessas, calçadas e mares. Aguardo-te em todas as alvoradas ao compasso dos gemidos das folhas das árvores e abro a janela. Lá fora, há uma renovada existência que se destila em cada pétala. Nos lábios, escorre uma gota de vida e os pássaros indicam que saímos do ponto de partida.
Que importa o tempo que faz hoje, se chove ou se faz frio, se as raízes que criámos nos petrificam e o vento nos ondula com a intensidade com que molda as dunas do deserto. Em cada gota de chuva há uma história, um sonho perdido e achado, um código, uma vontade que nos precipita na busca das fantasias que nos povoam. Já te procurei em mim e encontrei-te, foste o canto do cisne em pleno zénite.

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