A MICAS... Ana Fonseca da Luz


A Micas nem sempre tinha sido Micas. A mãe e a madrinha, senhoras muito ligadas às lides da Santa Madre Igreja, tinham-lhe dado o nome de Maria da Anunciação. Depois, e achando o nome demasiado pesado para uma criança de tão fraca constituição, resolveram encontrar-lhe um “petit-nom” que melhor lhe assentasse.
A madrinha sugeriu Sãozinha, a mãe Sãozita e o pai, que ainda era quem vestia as calças lá em casa na altura, decidiu que lhe deveriam chamar de “Micas” que era o que chamavam à sua santa mãe, que Deus a tivesse lá muitos anos sem ele, e que dava pelo nome de Miquelina. A mãe odiou, porque sempre tinha odiado a sogra e a comadre benzeu-se, porque lhe soou a nome de pecadora. Mas estava decidido. A partir desse dia a Maria da Anunciação passaria a ser chamada de Micas.
A boa da Micas nasceu sem dever nada â beleza. A mãe bem lhe queria encontrar alguma coisa de bonita mas, por mais que a pusesse ora de perfil ora de frente, a rapariga não tinha ponta por onde se lhe pagasse. Tinha um cabelo preto e espetado que mais parecia pêlo de rato, uns olhos cinzentos pincelados de um verde indefinido, quando lhe dava o sol, e uns dentes que mal lhe cabiam na boca, ornamentando uns lábios carnudos de gata gulosa. Na escola não era uma aluna brilhante, mas gostava de aprender e tinha uma verdadeira paixão por livros policiais que devorava num ápice, descobrindo sempre quem era o culpado do crime, ainda o livro ia a meio. O pai adorava-a e a mãe idem mas, a bem da verdade, tinham pena que a pequena não fosse um bocadinho mais bonita.
Quando chegou aos onze anos, e para lhe estragar ainda mais o visual, a pobre rapariga, de tanto ler livros policiais, teve de começar a usar óculos que mais pareciam fundos de garrafa, tal era o grau da miopia que a castigava. O pai e a mãe deitaram por contas que ela nunca haveria de casar, porque só um homem tão desajeitado como ela, a haveria de querer e, mesmo assim, era preciso estar cheio de boa vontade. Mas a Micas, ou Miquinhas, como a criada velha lhe gostava de chamar, lá foi crescendo mais ou menos feliz entre os livros policiais, as novenas da mãe e o amor infinito da criada, que a criava com adoração de mãe devota. Só ela achava algum encanto à rapariga. Enquanto a mãe se lastimava que o cabelo da filha mais parecia pêlo de rato, a criada gabava o seu cabelo de veludo preto e, quando a mãe troçava dos seus lábios carnudos de gata gulosa, a criada adivinhava-lhe uma sensualidade que começava a despertar sem que mais ninguém se apercebesse.

- A Micas ainda a vai surpreender D. Imaculada, – dizia a criada velha – ainda se vai tornar numa bela e cobiçada mulher.-

- Vai sonhando Rita, vai sonhado – respondia a D. Imaculada observando a filha pelo canto do olho enquanto esta devorava mais um livro de Agatha Christie, por detrás dos seus óculos de metal dourado, enquanto ia brincando com as pontas dos cabelos, que já tinham jeitos de tanto serem enrolados e desenrolados com os dedos.

Um dia, a Micas queixou-se à mãe, que não conseguia ler com os óculos. O pai deitou logo contas à vida, porque a rapariga tinha de mudar de lentes e quem sabe até de armação, uma vez que as coisas lá em casa, em matéria de dinheiro, não iam muito bem, porque o negócio da venda de antiguidades que o pai lhe deixara, começava a descambar e porque o vício do jogo às sextas-feiras, no antigo clube lá da terra, o ia deixando ainda mais desfalcado. Além disso, a mulher, que ignorava por completo a sua situação financeira, metera na cabeça que tinha, porque tinha de ir em peregrinação à Terra Santa com o padre da freguesia e mais umas quantas ratas de sacristia.

- Ó mulher vai a Fátima que é mais perto e ao menos sempre rezas a uma santa aqui das redondezas. Para quê ir rezar para tão longe quando tens uma santa tão famosa aqui mesmo ao pé?

- Não blasfemes Joaquim, não blasfemes. Quem te ouvir até há-de pensar que somos pobres. Ora se as outras senhoras vão, por que não hei-de eu ir eu também?

Estava o caldo entornado. Ou os jogos das próximas sextas-feiras lhe começavam a correr bem, ou ele só ia ter dinheiro para lhe comprar o bilhete de ida. Se bem que a ideia até lhe agradasse. Estava fartinho de tanta missa, catequese, novena e cursos para casais que ele era obrigado a engolir, para agradar à mulher e para que ela não lhe apoquentasse a cabeça nas suas noites de jogo e de copos com os amigos. Se a coisa continuasse a correr mal, tinha de ganhar coragem e dizer à mulher que estavam praticamente falidos.
A verdade é que a Micas lá foi ao oftalmologista, que depois de lhe ver e rever os olhos e da pôr a ler letras miúdas e miudinhas, chegou à conclusão, que miraculosamente, a boa da Micas, já não precisava de óculos. Joaquim respirou fundo, limpou as gotas de suor com o lenço imaculado e alegrou-se ao pensar que nessa noite já poderia gastar mais alguns cobres na mesa de jogo.
- Deus seja louvado – pensou de si para si o bom do Joaquim.

Quando chegou a casa, a Micas já não tinhas óculos, se bem que as narinas ainda apresentassem um sulco em ambos os lados, fruto das pesadas lentes que há anos carregava. A criada velha achou-a ainda mais bonita e nesse dia, até a mãe lhe descobriu algum encanto. Micas fechou-se no quarto e mirou-se ao espelho. Tentou decifrar a cor dos seus olhos. Eram realmente de uma cor indefinida raiados de um verde bonito. Depois, atreveu-se a passar levemente a mão pelos seios que começavam a florir e levantou um pouco a saia para admirar as pernas magras mas muito bem torneadas. Se a mãe a deixasse vestir outras roupas um pouco mais modernas! Mas há anos que usava saias do mesmo feito. Ora saias de pregas, ora saias de machos que só diferiam do tecido conforme a estação do ano, e camisolas de gola alta de Inverno e camisas abotoadas até ao pescoço que mal a deixavam respirar. Voltou a mirar-se ao espelho. Detestava aquele cabelo que lhe dava pelo meio das costas sempre apanhado por um rabo-de-cavalo, rematado com um laço de fita que combinava com a saia. Um dia ainda havia de queimar aquelas roupas todas e usar roupas coloridas e bem curtas como algumas meninas lá do colégio usavam. Se a mãe pensava que ela havia de ser uma rata de sacristia como ela era, estava bem enganada porque a Micas, ainda havia de dar muito que falar.
Enquanto isto, a criada velha espreitava-a pela fresta da porta sorrindo por ver a sua menina a transformar-se numa bonita mulherzinha. Nessa noite o Joaquim perdeu mais uma vez na mesa de jogo. Chegou a casa desgrenhado, a cheirar a aguardente e sem um tostão no bolso. A mulher esperava-o ainda acordada, recostada na cama em grandes almofadões de renda.
Querem ver que a mulher queria festa? Logo nessa noite que a única coisa que lhe apetecia era entregar-se nos braços de Morfeu e esquecer por algumas horas o que o esperava. Mas não, não era festa que ela queria, queria dinheiro para ir até à Terra Santa. Joaquim ouviu a mulher enquanto se despia vagarosamente. Nesse momento teve vontade de a amordaçar mas, em vez disso, voltou-se para ela e disse-lhe:

- Nem vais nem à Terra Serra nem à terra do diabo. Estamos falidos mulher. Completamente falidos. A mulher emudeceu e ele deixou-se cair na cama e colou os olhos no tecto trabalhado, para onde ele sabia perfeitamente que a mulher olhava, enquanto ele fazia amor com ela.

- Não temos dinheiro mulher. A vida de rico acabou. Pára de comprar vestidos e sapatos. Pára de dar esmolas chorudas ao padre para as obras de caridade da igreja e esquece de uma vez por todas a viagem à Terra Santa. Temos de nos sentar e organizar a nossa vida de outra maneira. A Micas, para o próximo ano, vai deixar o colégio e vai para o liceu. Ficamos com a Rita, porque é como se fosse da família e se lhe dissermos que não temos dinheiro para lhe pagar, tenho a certeza que vai ficar cá, mesmo sem receber. Imaculada continuava muda, também ela de olhos colados no tecto. Conhecia o trabalhado do tecto de cor e salteado, cada flor, cada arabesco…

- Tu não me podes fazer uma coisa destas, Joaquim. Se eu não vou nesta viagem toda a gente há-de pensar que somos pobres…

- Ó mulher de Deus, nós somos pobres. Nós estamos completamente arruinados. Há meses que não vendo uma peça lá na loja. Temos andado a gastar todas as economias. Se ao menos eu arranjasse comprador para a loja…

Imaculada estava desfeita. Com que cara é que ela agora ia dizer às senhoras que não ia porque não tinha dinheiro? E como podia ela tirar a filha do colégio? Imaculada toda a noite não pregou olho, já o Joaquim, mal caiu na cama, adormeceu e embalou naquele ressonar encurtado por um breve assobio que ela tão bem conhecia. Mas como era possível aquele homem do diabo, que Deus lhe perdoasse por chamar assim ao marido, dormir daquela maneira se ele não tinha dinheiro para lhe dar para ela ir à Terra Santa? Estava decidido. No dia seguinte iria até à cidade vender um cordão de ouro, uma pulseira e dois ou três pares de brincos para custear a viagem. Quando chegasse de viagem, logo pensaria o que havia de fazer com respeito à vida de pobre que a esperava. E lá foi a D. Imaculada para a Terra Santa representado pela última vez o seu papel de mulher abonada. Havia de pedir a Deus ajuda e inspiração para dar uma volta na sua vida. D. Imaculada voltou inspirada da viagem à Terra Santa ou então, rezou tanto, que Deus lhe fez a vontade e a mandou de volta para a sua terra, cheia de boas ideias.
Quando chegou a casa deitou mãos à obra e a todas as ideias que trazia na cabeça. Lembrou-se de aproveitar a loja do marido e, para além das antiguidades, começar a aceitar tudo o que as pessoas já não usassem desde roupas, móveis e ouro para vender e ganhar uma boa comissão com o negócio. O Joaquim não reconhecia a mulher. Não abandonou a igreja, mas começou a ver que não era isso que lhe dava o sustento da família e, da casa de antiguidades, fez um espaço acolhedor e requintado aceitando com todo o sigilo tudo o que as suas amigas e conhecidas lá deixaram para vender. A Micas não deixou o colégio. A criada velha, que tinha um belo pé-de-meia, assumiu todas as despesas. Também para que queria ela o dinheiro? Não tinha parentes a quem deixar nada e há mais de 40 anos que aquela era a sua família. Micas despontava em esplendor e graça e os pais começavam a deitar por contas, que afinal a filha ainda havia de fazer um bom casamento.
Joaquim era agora um homem, também ele diferente. De repente viu-se e ser governado pela mulher. Largou o negócio e vivia com uma mesada que a mulher lhe dava recomendando-lhe: – Se gastares tudo de uma vez, vais andar até ao fim do mês sem um tostão no bolso e, numa noite em que o marido se entregava a mais um serão de jogatina lá no clube, entrou de rompante na sala de jogo e avisou os companheiros de jogo do marido, que não assumia nenhuma dívida que o marido fizesse. Joaquim corou, sorriu e respondeu-lhe:

-Está descansada, minha santa, que eu não vou fazer dívidas.

Imaculada não tinha mãos a medir. O negócio corria-lhe de feição e era o retrato de uma mulher realizada. Às vezes dava por si a pensar como era possível ter-se entregue àquela vidinha medíocre que não interessava a ninguém e maldizia o tempo perdido.
Micas era uma bela mulher de 18 anos. Dona de um cabelo cor de azeviche, de uns olhos raiados de um verde belíssimo e de uns lábios carnudos e vermelhos de fazer inveja às outras raparigas. Tinha atrás de si um exército de homens que a queriam namorar. A mãe cheia de orgulho, dizia:

- Bem dizias tu, Rita, que a Micas ainda havia de se tornar numa bonita mulher. Tomara Deus que ela aceite o pedido de namoro do filho do Sr. Juiz. Parece-me tão bom rapaz e além disso é rapaz de posses. Tinha a vida garantida…

-Não pense assim D. Imaculada, olhe a senhora… O Sr. Joaquim também era de muito boas famílias e olhe a volta que a sua vida levou.

Imaculada não respondeu, mas sabia bem que a Rita estava cheia de razão. Tantos sonhos, tantas ilusões e se não fosse o facto de se ter entregado à igreja de alma e coração, o mais certo era ter começado a dar ao marido vidro moído misturado na sopa, para se ver livre dele. Irra, com tanto pretendente, logo tinha escolhido aquele porque era de boas famílias e também porque os pais quase a empurram para debaixo dele, só para se verem livres dela. Por isso mesmo, jurou a si mesma, que não ia dar palpites nos amores da filha. O que for, será, pensou ela, enquanto recebia mais uma entrega de uns belos copos de cristal que uma amiga lhe tinha dado para ela vender. Se tudo corresse bem, fazia tensões de tirar dali uma bela comissão.
O marido, de vez em quando, aparecia na loja e dava-lhe palpites que ela simplesmente ignorava. Era o que faltava, se ele fosse bom nos negócios, não tinha acabado com a belíssima loja de antiguidades que tinha herdado do pai. Por isso, sempre que ele palpitava, dizia que sim, que sim senhora e depois fazia precisamente o contrário. Ou seja, ele era o seu barómetro. Se ele lhe dizia vende, ela ia, e comprava.Homens…
Micas tinha pretendentes e mais pretendentes mas, casar é que não era com ela. Quando acabou o liceu disse à mãe que não queria estudar mais.

- Mas que queres tu fazer da tua vida Micas, queres casar?

- Para já quero ajudá-la na loja. A mãe tem sempre tanto que fazer e depois, quero escrever livros policiais. Quanto ao casar, não está nos meus planos. O que eu quero é ser feliz. A mãe riu-se e sussurrou-lhe baixinho, porque o pai estava por perto

- Sábia decisão minha filha, sábia decisão. Além disso, mesmo que te cases tarde, vais sempre a tempo de te arrependeres.

Quem diria que a D. Imaculada um dia diria uma coisas daquelas à filha.

- Casar, mãe, só mais tarde, quando estiver cansada de estar bem – respondeu Micas a sorrir e a encaracolar com os dedos as pontas dos cabelos, vício que nunca perdera. Micas fez-se uma mulher plena de beleza e graça. Nunca escreveu nenhum livro policial mas nunca os deixou de ler. Acabou por tomar conta do negócio da mãe e aumentou a loja, que nunca deixou de ser um sucesso e onde as senhoras de bem que, tal como tinha acontecido um dia à mãe, tinham ficando mais pobres, iam deixar em segredo os meus bens mais precisos que depois eram comprados por novos-ricos que só compravam coisas para preencher um vazio qualquer que a vida lhes deixava e porque a Micas sempre inventava estórias mirabolantes sobre as peças que vendia. Ora era uma caixa que tinha sido pertença da Rainha D. Amélia, ora a bengala com cabo de prata que tinha pertencido a Salazar nos últimos anos de vida e até uns castiçais de prata lavrada que tinham iluminado Camilo de Castelo Branco enquanto escrevia o Amor de Perdição. Cada peça, por mais simples que fosse, era um tesouro na sua boca. A Micas era uma mulher linda. Namorou quem quis e quantos quis, viajou, conheceu meio mundo e nunca se casou porque nunca se cansou de estar bem.
Quando um dia ficou sozinha, primeiro sem a criada velha e depois sem os pais, deu por si a sentir vontade de conhecer alguém com quem passar o resto da sua vida. Casou-se já depois dos quarenta. Separou-se ainda antes dos cinquenta. Novamente sozinha e de bem consigo, olhou a sua loja com orgulho e percebeu que continuava a chamar-se “Loja de Antiguidades”, tal como no tempo do pai e depois, durante todo o reinado da mãe. Deitou mãos à obra e entre tralha e mais tralha, encontrou um latão velho com letras de douradas. “Coisas do Arco-da-Velha”, dizia o velho latão.
Tinha encontrado o nome para a sua loja. “Coisas do Arco-da-Velha” Olhou-se no espelho antigo. que lhe ornamentava a entrada da loja e viu a menina que tinha sido. Continuava a ter cabelo preto e escorrido, olhos de cor indefinida raiados de verde e lábios grossos de gata gulosa. A única diferença entre o que era e o que tinha sido, resumia-se ao facto de agora e apesar de sozinha, ser feliz.

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