Aconteceu... Ana Fonseca da Luz


Eu sabia que havia de acontecer. Sabia que viria o dia em que eu chegaria à tua casa e, em vez de te ver a ti de sorriso tímido no rosto e ansiosa pela minha chegada, encontraria os meus despojos à porta…
Cheguei mesmo a pensar que nem te encontraria, que nesse dia não terias coragem de olhar para mim e para a minha saída, para sempre, da tua vida e que ia encontrar a casa vazia e, no entanto, tão transbordante de ti.
Mas não. Surpreendeste-me, mais uma vez. Aguardavas-me, mais bela do que nunca, com o teu vestido preferido, de sorriso mentiroso e olhar castanho profundo.
Naquele momento, em que nenhuma palavra fazia sentido, senti-me cheio de vontade de te dizer coisas, coisas que nunca te disse, coisas que sempre tive vontade de te dizer, mas que sempre me pareceram incoerentes e despidas de sinceridade.
Nunca fui dado a grandes manifestações de carinho. Era como se me resguardasse para nunca ser magoado, era como se ao dizer o que tu realmente querias ouvir, percebesses a minha tão profunda fragilidade e, assim, eu passasse a depender de ti e desse sentimento que não desconheço, mas que me assusta.
A leveza do teu olhar a que sempre me habituaste, hoje não está em ti. Desconheço a mulher que me olha agora. Falas-me de coisas banais, para não me dares tempo para te dizer o que quero, para me desculpar deste meu desamor por ti, que é tão forte. Será desamor?
Vou ter saudades do teu “amo-te”, que me sussurravas, enquanto eu fingia dormir. Vou sentir saudades da maneira como me olhavas, quando eu fingia ler o livro que repousa ainda sobre a mesa e que eu sei que nunca irei terminar.
E para sempre me irá doer, fundo, fundo a tristeza que vi nesses teus olhos sempre tão iluminados, quando te disse que nada era eterno. Que eterno é apenas o que é sublime. Nesse momento, nesse momento percebeste que éramos um caso perdido. Que tinhas investido num homem que não te merecia, porque nunca foi só e inteiramente teu. Que só era teu, quando me envolvias nessas tuas asas, que dizias ter e das quais eu sempre me ria.
Mas tu tens realmente asas. Só agora reparei, quando me aproximei de ti para te beijar e me deste a face e não os lábios. Foi aí que vi as tuas asas e o poder que elas te dão, agora que estou de saída. Vai-me fazer falta o aconchego das tuas asas. Ainda não me fui embora e já tenho saudades tuas e deste meu desamor por ti que é tão forte, mas tão forte, que quase o confundo com amor profundo e doloroso.
Parece mentira que, ao fim de tantos anos, todas as minhas coisas caibam dentro de uma pequena mala e numa caixa.
Junto ao livro que nunca acabarei de ler, repousa o meu cachimbo. Ainda pensei levá-lo, mas, se o deixaste ali, sobre a mesa, é porque o queres para ti. Vou deixá-lo. Enfeita-te a mesa.
Quem sabe daqui a algum tempo, não ganhe coragem e volte aqui com a desculpa para o vir buscar e aproveite para te ver. Quem sabe…
Pareces-me impaciente, como se tivesses pressa que saísse da tua vida, como se a minha presença, pela qual sempre ansiaste, agora te fizesse mal.
Contudo, hoje sou eu que não tenho pressa de sair como nos outros dias, como nas outras noites, como nas manhãs em que me olhavas, enquanto eu fingia dormir, ansiando sempre pelas palavras que nunca te disse.
Percorro a casa, mudo. Tu dizes coisas sem nexo.
Instala-se entre nós uma tensão mal dissimulada, que nos incomoda, que nos perturba e que me deixa a mim sem jeito e a ti sem brilho. Esse brilho que sempre te acompanha e que sempre me ofusca a mim.
Sento-me mais uma vez no sofá onde tantas vezes me sentei e atraso a minha partida, porque tenho necessidade de te dizer alguma coisa. Tu manténs-te de pé, à minha frente, mas de olhar vazio e impaciente.
Ganho finalmente coragem e peço-te para te sentares um pouco, porque preciso de te falar, porque um grande amor ou desamor não acaba assim, tão silenciosamente.
Sentas-te a meu lado contrariada e ausente ou, pelo menos, é assim que te adivinho.
Começo a falar-te dos bons momentos que tivemos e das boas lembranças que levo de ti dentro do meu coração e dentro da mala que me espera à porta, impiedosa. Tão impiedosa como o teu olhar, no momento em que termino o meu breve discurso.
Com os olhos presos nos meus, dizes-me que não tens nada mais para me dizer. Que já me disseste tudo o que sentes e que tudo o que agora possa ser dito só servirá para nos magoar. Dizes-me baixinho, num fiozinho de voz magoado, que é melhor que eu saia. Estás cansada. Queres ir dormir.
Na minha garganta estão presas todas as palavras que nunca te disse e que agora me parecem tão simples de dizer. Pela primeira vez na minha vida, tenho vontade de te dizer o “amo-te” que nunca te disse e pelo qual tu sempre ansiaste. Só agora percebo o quanto te amo.
Mas já tu me abres a porta de saída e me passas para a mão a pequena mala onde levo tudo o que é meu e a saudade que já sinto de ti.
Já do lado de fora da porta, passo-te para a mão o CD de Jacques Brel de que tanto gosto e que tantas vezes ouvi a teu lado, sem nunca ter tido coragem de te cantar ao ouvido “Je t`aime encore tu sais, je t`aime…
Não aceitas. Agradeces e dizes que não o queres.
Já do lado de fora, com a porta já fechada, aguardo alguns minutos, com uma esperança quase infantil de que voltes atrás e me recebas de lágrimas nos olhos e me peças para ficar.
Encosto o ouvido à porta e aguardo mais um bocadinho.
No aparelho de CD, distingo baixinho a voz quente de Leo Ferré que canta:
“Avec le temps va, tout s`en va…”

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